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domingo, 21 de julho de 2013

Ednardo 40 - O ouro, a estrada


Pedro Rogério
ESPECIAL PARA O POVO
   
Várias possibilidades existem de se ouvir e compreender um dos maiores expoentes da música brasileira: Ednardo. Aquele que olhou com interesse para elementos fundantes da cultura e trouxe para sua obra. Podemos ver um tropicalista cearense, reinventor de nossa tradição musical que bebe de todas as fontes, do xote ao rock, do xaxado à balada, do maracatu ao bolero. É também um encorajador das novas gerações com o Massafeira Livre, que ligou sua arte com outras linguagens como o cordel, a literatura, o cinema, a poesia, as artes plásticas, o artesanato. Mas, Ednardo se narra um andarilho que vem cantando suas descobertas, encontros, desencontros, alegrias, tristezas e celebrando a vida tal qual um trovador.
    No primeiro disco registrado em gravadora, com contrato assinado – Meu corpo, minha embalagem, todo gasto na viagem - o título já coloca a viagem como tema. Se o corpo é embalagem, qual seu conteúdo? Os sonhos, os desejos, a vontade de conhecer o novo. Já não bastam a Aldeota, o Mucuripe, nem a Beira Mar. E se a embalagem, que é a parte visível foi toda desgastada, ficou o invisível, que se manifestou em melodias, harmonias, ritmos e poesias.
   
Logo na primeira faixa do vinil lançado em 1973, “Ingazeiras”, ele anuncia que “o sul, a sorte, a estrada me seduz”. Ednardo e seus pares foram seduzidos pelas belas possibilidades de cantar e interpretar o Brasil a partir do Ceará. Sem ter o medo da morte atravessou oceanos e continentes, tal qual Ulisses em sua Odisseia homérica.

    “Ingazeiras” foi composta para o artista plástico cearense Aldemir Martins. Aldemir contou sua história de vida para Ednardo que na música destacou essa vontade de sair do “oco do mundo”, e com o desejo de realização de seus sonhos, varar cancelas, abrir porteiras. O “ouro em pó” de Aldemir, que reluz como um oásis em meio as dificuldades e limitações de sua origem social, se encontrava na coragem de sair e efetivar seus sonhos.       A segunda faixa do mesmo disco traz a canção “Terral” de Ednardo que mais uma vez coloca o artista na perspectiva daquele que está em viagem. Aqui o autor declara para outrem de onde veio, e de “onde (ele) queria ficar” e nos traz o tema da saudade daquele que se distanciou do seu lugar de origem. A bússola para o navegador das ondas sonoras da canção são suas próprias melodias, sua própria trajetória. O andar traz um novo andamento, os passos traduzem novos compassos.
    Ednardo e Augusto Pontes traduziram as primeiras dificuldades na canção “Água Grande”: “A primeira vez que eu vi São Paulo/ Da primeira vez que eu vim São Paulo/ Fiquei um tempão parado/ Esperando que o povo parasse/ Enquanto apreciava a pressa da cidade/ A praia de Iracema/ Veio toda em minha mente/ Me banhando da saudade/ Me afogando na multidão/ Eu vim São Paulo/ Se afogando na multidão/ Eu vi São Paulo/ Janeiro e nada/ Fevereiro e nada/ Marçabril e águagrande despencou/ Um aviso de chuva me chamou/ Marçabril e águagrande despencou/ Um aviso de chuva me chamou/ Adeus São Paulo/ Está chovendo pras bandas de lá/ Também estou com pressa”.
    Concluímos esta leitura-homenagem em muito boa companhia: com Augusto Pontes, uma das principais referências da geração de que participou Ednardo. A parceria de Ednardo e Augusto Ponte anunciou: “Carneiro”: “Amanhã se der o carneiro/ O carneiro/ Vou m’imbora daqui pro Rio de Janeiro/ As coisas vem de lá/ Eu mesmo vou buscar/ E vou voltar em vídeo tapes/ E revistas supercoloridas/ Pra menina meio distraída/ Repetir a minha voz/ Que Deus salve todos nós/ E Deus guarde todos vós”.
    Salve o andarilho, trovador, menestrel e viajante das canções e emoções brasileiras – Ednardo!
Pedro Rogério é professor da Universidade Federal do Ceará, pesquisador e músico


MASSAFEIRA, O LIVRO 21/07/2013

Entre luzes que lhe escondem

O jornalista, escritor e crítico musical Dalwton Moura reflete acerca dos muitos significados e leituras que se entrecruzam no livro Massafeira %u2013 30 Anos, organizado por Ednardo e lançado em 2010, e diz sobre a necessidade de mais registros sobre a música feita no Ceará
Dalwton Moura
ESPECIAL PARA O POVO
   
 No calor desta efeméride, em meio ao reconhecimento à vasta e notável obra de Ednardo (e à necessária discussão sobre a renovação, reafirmação ou estagnação dessa obra, nas últimas décadas), cumpre destacar um outro aspecto da atuação do artista. Não o cantor e compositor, nem o produtor responsável, ao lado de Augusto Pontes e de tantos outros, pelo caleidoscópio de linguagens e expressões da Massafeira Livre, embora ele permaneça indissociável dessa condição. Mas o aglutinador responsável por um dos mais significativos registros sobre a música cearense, na forma de livro.
    Falamos de Massafeira – 30 Anos, publicação de fôlego, lançada em 2010, como um imprescindível registro de muitos dos infinitos ângulos possíveis da “marmota do mormaço”, a história enriquecida pelos testemunhos dos que a vivenciaram, mas também de várias visões sobre aquela tentativa de inserção de novas e numerosas gerações de músicos do Ceará na faixa de visibilidade da música nacional.
     É sintomático que, tanto tempo e tantas mudanças depois, entre fronteiras dissolvidas e a reinvenção dos próprios modos de produção, distribuição e consumo musical, a música feita no Ceará siga enfrentando desafios semelhantes aos de décadas anteriores, quanto à sua difusão para públicos mais amplos, aqui e em outros cenários, e à sua validação na mesma medida de sua qualidade e sua diversidade. Um mergulho nas causas dessas limitações demandaria um grande debate, mas parece claro que o caminho para superá-las passa por alguns pressupostos, entrelaçados justamente na construção dessa afirmação.
    Se a geração de Ednardo, Belchior, Fagner, Rodger Rogério, Téti, Cirino, Brandão, Fausto Nilo, Ricardo Bezerra, Dedé Evangelista, Tânia Cabral, entre outros nomes de destaque, permanece, ainda e para muitos, como referência mais imediata quando se fala em “música cearense”, as várias gerações que a sucederam encontraram diante de si, em diferentes níveis e contextos, a tarefa de inventar sua própria estrada. Muito mais que fáceis e superficiais generalizações do tipo “depois deles, não apareceu mais ninguém”, há que se buscar compreender o porquê de certas dificuldades persistirem por tanto tempo e permearem a trajetória de tantos artistas, mesmo aqueles com mais claro potencial de comunicação e mercado.
    As tramas dessa teia se tornam mais complexas à medida em que, no plano local, vivemos ainda a construção de uma cena, o esboço de uma indústria cultural minimamente sustentável como tal. Enquanto isso, no âmbito geral, as configurações da música se modificaram tão rápida e profundamente que mesmo cenários e protagonistas de há muito estabelecidos se viram fadados a reinventar-se ou desaparecer. De todo esse processo, a concorrência aumentou e a diversidade emanou como um “efeito colateral” – extremamente saudável para o público ativo o suficiente para garimpar novos nomes. Positivo também para os artistas que compreendem essa realidade e desenvolvem, na medida da perna de cada um, os instrumentos para nela atuar. Mesmo assim o nome, a fama, os milhões de discos vendidos em um ontem distante, a consagração em diferentes níveis permaneceram como valiosos distintivos nas prateleiras virtuais.
    A quem não detivesse tal condição, restava a luta pela etiqueta do novo, da “tendência”, do “artista em ascensão” ou de “um novo nome promissor”. E é exatamente aqui que os caminhos dessa história se encontram. Nossos novos nomes seguem necessitando de instâncias de consagração, de parâmetros de validade, de chancelas que os coloquem em pauta e os legitimem perante um público maior. A escassez de bibliografia sobre o cenário da música no Ceará é um dos sintomas dessa cena ainda em construção. Se ainda lutamos para ter mais produtos musicais – discos, singles, shows, clipes, turnês – bem acabados e divulgados, com regularidade e visibilidade, terminamos por cultivar um quê de incompreensão diante de inúmeros nomes com grande potencial que não conseguem – por quê? – sedimentar as necessárias pontes até maiores audiências.
    Pois bem. Massafeira – 30 Anos, o livro, ou projeto multimídia, é uma louvável exceção a essa regra. Ousa destoar do coro do “quase”, do “médio”, do “possível”, para afirmar que a música feita no Ceará merece, sim, um registro em centenas de páginas em couché e capa dura. Trata-se de um olhar em retrospecto que sugere muitos e importantes pontos para essa discussão. Mas principalmente coloca em perspectiva a música de um Ceará grande, destoando da leitura, exposta por parte da imprensa, de que aquela teria sido uma geração “abortada”, sufocada entre o sucesso reluzente do “Pessoal” e as mudanças de cenário que travaram o jogo.

Outro bom debate. Independentemente dele, porém, é inegável que o livro cumpre uma tarefa importantíssima, ajudando a aguçar o olhar e a provar que é possível, para esta mesma geração e para aquelas que a ela se seguiram, ver sua história contada de forma respeitosa e atraente. Ter ao menos o benefício da dúvida. Contar com um registro à altura da repercussão que, afinal, a Massafeira de Ednardo, Augusto, Brandão e muitos outros teve para muitos.
    Os ecos da Massafeira chegaram a muitos outros potenciais ouvintes e novos irradiadores através da publicação, que bem pode merecer suas críticas, pela ausência, mesmo intencional, de maior ordenamento, pelo espaço para alguns nomes deslocados, pela ausência de outros. Mas, desde a capa em vermelho com o infinito tracejado nos chifres do carneiro estilizado por Brandão, o livro sugere muito mais a verborragia que a síntese, o múltiplo que o individual, a hipótese que a conclusão. Apesar de ter sido organizado por Ednardo e idealizado também por Julia Limaverde (filha do cantor), são as várias vozes sobre a Massafeira as responsáveis pelo encanto do livro. Do palco à academia, de 1979 a 2010, do TJA ao Dragão do Mar, da Massafeira ao Manifesta.
    Outro grande trunfo da obra é o precioso acervo fotográfico de Gentil Barreira sobre a Massafeira, em 1979, e a posterior viagem dos cearenses ao Rio de Janeiro, para a gravação do que viria a ser um marcante, embora problemático, álbum duplo. Os fotogramas daquela efervescência revelam desde o “Pessoal” até os novíssimos músicos que reclamavam espaço para o rock e o blues, em meio ao telúrico, ao lírico, aos tons menores da tradicional canção cearense. Todos e cada um foram registrados pelo olhar de Gentil, em fotos em preto-e-branco, mas plenas de matizes na linguagem, nos detalhes, nas leituras, nos desejos. São os longos cabelos de Ife ou de Klaus Voormann a empunhar o contrabaixo? São Waters, Mason, Gilmour, Barrett e Wright ou Téti, Rodger, Stélio, Régis e Luiz Miguel a se debruçar sobre os botões da mesa de som? São os punks londrinos ou os jeans e olhares de Mona Gadelha e Lúcio Ricardo? Paralelos que brotam das imagens.
    Outra oportunidade que justifica a viagem é a de (re) ouvir os dois LPs da Massafeira, transpostos para CDs a realçar o brilho de eternas joias, como “Vento-rei”, “Aurora”, “Pé de espinho”, “Aviso aos navegantes”, “Cor de sonho”, “Último raio de sol”... Patativa em “Senhor doutor”, Ana Fonteles e Ednardo em “O sol é que é o quente”, Téti e Tânia Cabral em “O rei”, Ângela Linhares em “Como as primeiras chuvas do caju”. É, faltou “Frio da serra”, gema da lavra de Petrúcio Maia e Brandão... Mas esta vale o esforço de procurar logo ali.
    Entre virtudes e limitações, o livro organizado por Ednardo e tecido a inúmeras mãos demonstra um nível de valorização que, infelizmente, ainda destoa daquilo a que a música feita no Ceará está acostumada. Precisamos de mais registros como este, mais publicações que digam das asfixias e dos paradoxos mas também da verdadeira riqueza de nossa música. Que possibilitem abreviar o hiato de informações entre passado e presente, descortinando nossa trajetória, em boa medida ainda a ser contada. Porque, apesar das luzes que lhe escondem, essa história segue se refazendo em novas canções. E tem cada vez mais pressa de continuar.
Dalwton Moura é jornalista, escritor e crítico musical. Autor do livro Nos Acordes do Jazz & Blues -Memórias do Festival Jazz & Blues de Guaramiranga (2013).
CARNAVALA alegria que existe
O acervo carnavalesco de Ednardo é destacado aqui no artigo de Mateus Perdigão, do bloco Luxo da Aldeia
Mateus Perdigão 

O carnaval é um tema presente – e recorrente – na obra dos grandes compositores do cancioneiro popular brasileiro. Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Alceu Valença, dentre vários outros artistas, já escreveram músicas para o carnaval ou usaram-no como pano de fundo nos versos de suas canções. A presença deste tema em suas obras artísticas não acontece à toa, ele é uma das maiores manifestações culturais de nosso País, em que pese toda sua heterogeneidade, complexidade e diferenças locais.
    Com Ednardo não poderia ser diferente. Dentro do rol dos grandes compositores brasileiros, o carnaval foi tema de algumas de suas canções. Apesar de não ser o tema central de sua obra, ele merece atenção pois faz parte de uma visão maior que o compositor tem sobre Fortaleza e sua história. Entender o carnaval na obra de Ednardo, de certa forma, é pensar o carnaval de Fortaleza.
    Dotado de uma sensibilidade e uma percepção estética singular, Ednardo canta o carnaval de uma forma em que ele não apareça apenas de forma descritiva, mas através de uma perspectiva histórica. Ele aparece em sua obra através de um olhar crítico de quem viveu e vivenciou diferentes experiências carnavalescas. E o carnaval em Fortaleza tem como um dos principais expoentes o maracatu.
    A ligação de Ednardo com o maracatu começou ainda na infância, por volta dos cinco ou seis anos de idade, quando seus pais o levaram para ver a concentração dos maracatus no Parque da Liberdade. De lá, seguiu os cortejos até o Passeio Público que, depois, seguiu pela rua Senador Pompeu. Na ocasião assistiu e se encantou com os cortejos dos maracatus Estrela Brilhante, Az de Espada e Az de Ouro, que desfilavam pela rua pouco iluminada carregando os próprios candeeiros, num batuque envolvente.
    O Estrela Brilhante foi, nas recordações do compositor, o primeiro maracatu que ele viu. Ainda criança seguiu o cortejo por entre as pessoas, levando seus pais à loucura, que o procuraram por aproximadamente meia hora pela multidão. Além de ser uma boa recordação de infância, o Estrela Brilhante foi tema de uma canção sua, gravada no disco Imã, em 1980. Nesta canção, Ednardo buscava homenagear um dos períodos mais férteis do maracatu cearense: “Maracatu estrela brilhante/ Maracatu o teu brilho errante/ Gamela da nossa mistura/ Tão linda tão mista tão pura/ Maracatu/ Garra maracá já guerreiro/ Batuque ferro e ganzá/ A flecha cravada no céu brasileiro/ Infinita mente cantar / Cantar/ Cantar”
    Quando o local do desfile dos maracatus deixou de ser na rua Senador Pompeu e passou a ser na Avenida Duque de Caxias houve um certo esvaziamento do carnaval de Fortaleza e uma tendência a desvincular os maracatus do carnaval da cidade – por motivos inclusive políticos. “Mais um Frevinho Danado” é uma canção de Ednardo gravada na década de 1970, no disco O Romance do Pavão Mysterioso, que narra o início desse esvaziamento: “No espaço curto desse passo louco / vou sair um pouco pra esquecer o triste / se eu lhe encontrar pelo meio desse povo / vou lembrar de novo que a alegria existe”. Outra canção que fala do mesmo assunto é “Maresia”, gravada no disco O Azul e o Encarnado, de 1977: “A calmaria da cidade é geral/ É geral, é geral/ E a maresia que molhou a minha pele / Rimou com a canção pra este carnaval/ Nada me resta a não ser tua beleza / E a incerteza do que vai ser de mim/ Por isso basta dessas coisas sérias (...)”
    Outra canção que merece destaque no seu repertório carnavalesco é o frevinho “Bloco do Susto”, gravado no disco Cauim, de 1978.
    Ednardo é um entusiasta do maracatu cearense e do carnaval de Fortaleza. Sempre atento às manifestações culturais e todas as transformações que ocorreram no passado, com certeza ele está atento a este novo fôlego que o carnaval de Fortaleza tem tomado. Que os atuais blocos, escolas de samba, afoxés e maracatus se inspirem em suas canções para não mais deixar a calmaria na cidade ser geral, mas que permitam que todos nós possamos sair fantasiados de alegria por aí.
Mateus Perdigão é sociólogo, um dos fundadores e músico do Bloco Luxo da Aldeia que surgiu em 2006, no Benfica, com a proposta de reunir foliões em torno de canções de compositores cearenses.

Conexão musicultural
Assistindo à novela Saramandaia, na década de 1970, o jornalista Nelson Augusto teve contato pela primeira vez com a música de Ednardo. Aqui, ele conta os encontros que teve ao longo da vida com a obra e o compositor %u2013 que acabou por se tornar um amigo pessoal
Nelson Augusto
ESPECIAL PARA O POVO
Como grande parte da população brasileira, eu também tive acesso primeiramente ao cancioneiro de Ednardo, através da criação do compositor cearense, “Pavão Mysteriozo”, a qual foi o tema central da trilha sonora da telenovela Saramandaia, em 1976, na Rede Globo do Televisão.
    Na época, consegui o então vinil da novela, pois o elepê O Romance do Pavão Mysteriozo, lançado dois anos antes, em 1974, era difícil de encontrar nas lojas de discos. No álbum original de Saramandaia, a longa e criativa introdução inicial da composição foi cortada e Ednardo já começa cantando.
    Só tempos depois, através de um amigo, Luiz Antônio Secundino (já falecido) que possuía o então primeiro LP solo do Ednardo, inclusive com o criativo encarte, nos moldes da literatura de cordel, gravei numa fita cassete, a obra completa e escutei o belo solo que inicia a canção que, primeiramente divulgou o maracatu cearense para o Brasil inteiro.
    De tanto ouvir a tal da fita cassete com o álbum O Romance do Pavão Mysteriozo completo, decorei todas as letras e quando uma música acabava, no intervalo mudo eu já lembrava do início da outra canção. Tanto que, ao adquirir o álbum em CD, numa reedição de 2001, produzida por Charles Gavin, de imediato, notei que ele também mutilou parte da obra, quando cortou uma vinheta que existe no vinil, entre o final de “Avião de Papel” e o início de “Mais Um Frevinho Danado”.
    A omissão deu-se por conta da exclusão de uma pequena composição, em que Ednardo, acompanhado do seu sonoro violão, canta, “É labareda, é labareda, é labareda, brasa e cinza”, palavras nas quais o artista celebra o nome de um dos livros de seu pai, o educador Oscar Soares Costa Souza, a publicação Labareda, Brasa e Cinza, lançada em 1979 durante a Massafeira Livre, no Theatro José de Alencar.
    Quando da inauguração da Cidade 2000, na segunda metade da década de 1970, quando fui residir no conjunto habitacional do Papicu, conheci duas pessoas que tiveram uma relação direta com o trabalho de Ednardo: o Dudu (hoje apresentador de televisão e animador popular de eventos culturais, Eduardo Praciano) e o cantor, compositor, músico e arranjador Wilson Cirino, também integrante do Pessoal do Ceará.
    O Dudu trabalhava na Emcetur e também atuava com peças de teatro e depois, chegou a participar como um dos produtores do Massafeira, fazendo parte inclusive, da trupe alencarina que foi para o Rio de Janeiro, gravar o tão sonhado álbum duplo de vinil. Lembro-me das nossas noitadas culturais, nas quais sempre gostávamos de cantar a música “Fênix”, do álbum Azul e Encarnado, lançado por Ednardo em 1977.
    Com Wilson Cirino, que atualmente mora outra vez na Cidade 2000, além dos contatos musicais, nos quais ele sempre tocava seu violão e falava de suas atividades artísticas, quando vinha de férias para Fortaleza, sempre jogávamos futebol e tomávamos umas cervejas, após os rachas. Ao lado de Pepeu Gomes, Cirino fez os arranjos do disco Cauim, álbum que Ednardo gravou e lançou em 1978, pela Warner, atividade que, antes de acontecer, já tínhamos notícias.
    Continuei adquirindo os discos seguintes – Ednardo (1979) e Imã (1981). Em 1981, quando fui para a Rádio Universitária FM, primeiramente como bolsista do Curso de Comunicação da UFC, de imediato levei minha coleção de elepês dele, para enriquecer o acervo da emissora. Foi a partir daí, que fiz as primeiras entrevistas com Ednardo, artista da música cearense que também se tornou meu amigo pessoal.
     Tanto que, sempre que ele disponibilizava um álbum novo no mercado, fazíamos o lançamento, conversando sobre o processo de produção, e, tocando todas as faixas, num programa que ainda produzo e apresento todos os sábados ao meio-dia na Rádio Universitária FM, O Disco da Semana.
    Quando do surgimento do CD, na primeira metade da década de 1990, através de um projeto de minha autoria, o “Memória 107”, cujo propósito é lançar no formato do Compact Disc, álbuns que foram gravados originalmente em vinil, sugeri ao Ednardo, fazer o lançamento do álbum Massafeira, no formato digital. Como as matrizes pertenciam ao acervo da atual Sony Music, através dos dados passados pelo Ednardo, contatei com a multinacional, a qual cobrou um preço fora do meu orçamento, para produzir mil cópias do álbum duplo coletivo, em CD.
    Anos depois, em 2010, numa produção da Aura Edições Musicais, com organização de Ednardo, patrocínio do Banco do Nordeste e com chancela do Ministério da Cultura e o Governo do Estado do Ceará, através da Secretaria da Cultura, foi lançado o luxuoso livro/disco Massafeira – 30 Anos – Som, Imagem, Movimento e Gente.
    A publicação tem vários depoimentos de participantes do movimento Massafeira, bem como textos de professores, estudiosos da cultura e jornalistas, além de fotos e vasto material impresso de publicações em outros veículos de comunicação. Serve de pesquisa para os interessados na história da música cearense, pois resgata um pouco da trajetória dessa geração de artistas alencarinos.
    Nesses 40 anos de trajetória da carreira artística de Ednardo, resta-nos agradecer ao cantor, compositor que mais divulgou a riqueza da cultura musical cearense, tanto no que se refere aos seus ritmos, como principalmente o maracatu, quanto às mensagens das letras, nas quais, os lugares, personagens, expressões, usos e costumes cearenses, sempre são citados.
    Na atual versão da telenovela Saramandaia, como não mantiveram a trilha sonora original, creio eu que a carga dramática dos personagens perdeu muito por conta do fio condutor imagem versus mensagem musical, não existir. No remake anterior da Globo, Gabriela, as canções originais foram aproveitadas outra vez e o resultado foi fantástico. Acredito que, apesar da nova roupagem de Saramandaia ser “livremente inspirada na obra de Dias Gomes”, como denunciam os créditos na tela, João Gibão sem o “Pavão Misteriozo” e o Professor Aristóbulo sem “Canção da Meia-Noite” (Almôndegas), por exemplo, nunca vão retratar a realidade fantástica que o autor escreveu em seu texto.
    Espero que o show de Ednardo, próximo dia 27, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, com o auxílio luxuoso de excelentes instrumentistas e cantores cearenses e a participação especial do paraibano Chico César, seja um sucesso também de público. Como o espetáculo que vai ser filmado e transformado em um futuro DVD, as novas gerações poderão ter um documento sonoro e musical representativo da obra do compositor mais representativo da cearensidade cultural contemporânea. Para os admiradores antigos, pela primeira vez terão um documentário de qualidade da obra do autor de “Beira-Mar”.
Nelson Augusto é jornalista e radialista da Universitária FM e editor de conteúdo de www.nelsons.com.br, site que brevemente implantará uma web rádio com foco também para a música cearense.