Um tempo antes de eleger
Lula presidente da República, o Partido dos Trabalhadores alcançou a hegemonia
na opinião pública - não em matéria econômica, onde prevalecia a defesa das
privatizações, mas na ética e na questão social. Sua vitória em 2002 não foi um
passeio, mas se escorou na conquista da opinião pública. O PT nasceu como nosso
grande partido ético. De 1981 a 2002, foi esta sua grande característica. O
próprio PSDB, fundado em 1988, surgia das costelas do PMDB como um projeto
ético - dos descontentes com Orestes Quércia - e a muitos parecia ser o PT
palatável, o PT moderado, o PT light; unidos, esperou-se, os dois mudariam o
Brasil. Isso não ocorreu.
Mas o PT aumentava
seu prestígio. Um ano antes da eleição de Lula, era hegemônico na cultura
política brasileira. Sua defesa da decência na vida pública, somada à proposta
de justiça social, lhe davam o que Gramsci chama de hegemonia. É claro que
precisou mostrar-se realista, dando garantias aos agentes econômicos; mas
estava na posição de quem, mesmo perdendo, ganhava moralmente. Pois ganhava nos
espíritos, mesmo que perdesse na matéria. A longo prazo, isso conta.
Lembro Al Gore: nos
Estados Unidos, as causas sociais se impuseram quando se tornaram éticas - a
emancipação dos escravos, o fim da segregação racial. Foi o que o PT fez com a
inclusão social.
Hoje, vemos o movimento
contrário. A ética deixou de ser o distintivo do PT. Desde a crise do mensalão,
em 2005, a oposição se apossou dela. A questão hoje é: se perdeu a hegemonia,
se perdeu o domínio das mentes e corações, estará o PT fadado a perder, também,
as eleições? Ou as vencerá em 2014, mas só reforçando um descompasso entre a
opinião e o voto? E por que perdeu este poder espiritual que, quando lhe
faltavam os poderes materiais (o político, o econômico), parecia ser
decididamente seu?
Há explicações para
isso, mas não me importam aqui as que denunciam a ação dos partidos de oposição
(que, afinal, fizeram o que uma oposição faz: oposição) ou a mídia. O que
interessa é o que o PT fez para perder a hegemonia. Mas, antes, um pouco sobre
essa palavra.
Marx, embora descrevesse
bem o funcionamento do capitalismo (não devemos esquecer que seu maior livro se
chama "O capital" - e não "socialismo" ou
"revolução"), nunca detalhou como se poria fim a ele. Por vários
acasos, esse papel coube a Lênin, líder de um partido secundário num país
atrasado, mas que foi onde se deu a revolução. Lênin delegou a tarefa a um
partido único, composto de revolucionários profissionais e organizado em torno
do segredo e da hierarquia (para ser exato, do "centralismo
democrático": primeiro, um debate livre; depois, a decisão em assembleia;
depois disso, obediência estrita à decisão da maioria). Foi o que funcionou nos
países pobres, de Estado hipertrofiado e sociedade atrofiada, em que o
comunismo se impôs nas décadas que se seguiram a 1917.
Gramsci, comunista
italiano, que passou seus últimos anos de vida nas cadeias de Mussolini, propôs
outra via. Em países de forte sociedade civil, a conquista dos espíritos seria
mais importante do que a vitória pelas armas. Essa ideia singela mas forte
inspirou uma forte renovação democrática na esquerda, comunista ou não. Foi
influente no Brasil. Ressalta o combate cultural, ideológico, numa sociedade
democrática. Explica como o PT foi crescendo. Explica também como, em seus anos
no governo, o PT se enfraqueceu. Pois hoje o PT é quase só um partido de poder,
ao contrário de seu passado; se perder o poder federal, será uma pálida sombra
do que já foi.
Exemplos não faltam.
Depois da eleição de Lula, o PT teve dois presidentes com ideias, José Genoino
e Tarso Genro; foram os únicos a perder esse cargo. Os dirigentes que estão no
partido ou no Legislativo pesam menos do que quem está no Executivo. Isso
porque no governo, no mundo da assinatura, você faz acontecer; já no Senado, na
Câmara, no mundo da palavra, você não gera resultados imediatos tangíveis. Um
político ganha ao ir para um ministério; mas, se ele for um líder, com isso
perdem o partido e a opinião política. E saíram de cena os intelectuais
identificados ao PT - uns porque romperam com ele, como Chico de Oliveira;
outros, simplesmente, se calaram. O partido perdeu líderes, adquiriu gestores.
Hoje, o discurso de defesa do governo se concentra na defesa dos programas -
emergenciais - de inclusão social, como o Bolsa Família e o ProUni. Aprovo-os,
mas eles, se resolvem um passado odioso, não desenham um futuro. O PT deixou de
ser um partido de propostas, mesmo que estas fossem utópicas.
Poderia ser diferente. A
meu ver, no capítulo da moral o PT poderia enfatizar que o grande escândalo
ético brasileiro era, dez anos atrás, ter quase metade da população nas classes
D e E. Deveria insistir no caráter ético das políticas contra a miséria e a
própria pobreza. Não deixaria, então, o tema ético ser tomado, como aconteceu,
pela oposição - que coloca em segundo plano a miséria e o que se fez contra
ela, para se concentrar nas acusações de corrupção, que atravessam nossa
história desde a colônia com muita retórica e pouco resultado.
Mas não é esse o combate
que o PT tem travado. Basta ver o bordão do terceiro mandato petista -
"País rico é país sem pobres". Admiro essa redefinição do que é
riqueza, como o contrário do sonho de Miami. Mas poderia ser "país
digno". Poderia ser "país ético". A riqueza, sobretudo quando
medida em termos de consumo, consegue apoio somente a curto prazo - um apoio
que se esvai quando se esgota o consumo. Ética, dignidade, esperança têm
alcance mais longo.