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domingo, 31 de março de 2013

Um novo pessoal do Ceará?

 
BEM DISTANTE DA geração que levou a música cearense para fora do Estado, um novo time de artistas busca espaço para difundir seus trabalhos. A convite do Vida & Arte Cultura, alguns representantes dessa nova cena mostram como é fazer música em Fortaleza
E já se vão 40 anos desde que a gravadora CBS botou nas prateleiras o LP Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem, mais conhecido como Pessoal do Ceará. Marco de uma produção local que começava a se pulverizar pelo País, foi ele quem deu nome a uma geração de artistas que contava com gente do calibre de Raimundo Fagner, Belchior, Ednardo e alguns outros. Tão forte é a obra e a história desses artistas, que, ainda hoje, é deles que a maioria do público lembra quando se fala em música cearense.
    No entanto, bem distante desses ídolos, uma nova geração de músicos surgiu no Ceará mantendo a veia autoral aberta. São artistas que nasceram num cenário pós “monopólio das gravadoras” e que contam com a tecnologia, as amizades e os próprios esforços para manter suas artes vivas e disponíveis para o público. Do erudito ao rock, passando por muitos outros estilos, a música cearense foi ganhando novas cores e estilos, se atualizando e sobrevivendo às intempéries de um mercado cada vez mais incerto. Nesse novo quadro, que não é exclusividade do Ceará, se o trabalho independente pode garantir mais liberdade criativa, exige, por outro lado, que os artistas assumam também o posto de produtores, empresários, roadies, entre outros.
    Para explicar como é fazer música atualmente no Ceará, o Vida & Arte Cultura convidou cinco novos compositores cearenses para um bate-papo no foyer do Theatro José de Alencar. Por cerca de uma hora, Caio Castelo, Oscar Arruda, Natasha Faria, Ayrton Pessoa e Gustavo Portela discorreram sobre as dificuldades de manter uma agenda de shows, gravações e projetos. Longe de representar todos os estilos e opiniões sobre o fazer música, os nomes apresentados aqui acumulam diferentes experiências nesse mercado. Num clima de “caos organizado”, as ideias e opiniões foram brotando numa conversa marcada pela informalidade, que começou justamente pela ligação desta nova geração com aqueles dos anos 1970.
Diálogo musical
Apesar da admiração geral pelos trabalhos de Fagner, Ednardo e Belchior (estes três principalmente), o que se faz por aqui hoje em dia parte de outras raízes. “Onde eu tive mais influência foi no Massafeira (coletivo, 1980). Dá pra viajar num monte de coisa dali. Mas eu ouvia mais as coisas de fora”, revela Caio Castelo. “Ouvi muito o Orós (Fagner, 1977), o Soro (Fagner, 1977), mas não vejo muita relação estética com essa (nova) geração”, afirma Oscar Arruda, mantendo o tom e lembrando que se aproximou mais musicalmente desses artistas depois de passar quase dez anos morando fora do Ceará. “Tenho mais admiração pelos músicos, como o Cristiano Pinho, Adelson Viana ou o Lu de Souza”, acrescenta Gustavo Portela.
    Longe de qualquer tipo de apadrinhamento por parte dos mais famosos, quem quase se aproximou de algum deles foi Ayrton Pessoa, que chegou a cogitar um disco produzido por Ednardo, quando integrava o grupo Argonautas. “Não tive nenhuma influência direta deles. Talvez do Eugênio Leandro. E o engraçado é que já teve algumas pessoas que disseram ‘você tem que mostrar essa música pro Fagner’”, comenta Ayrton Pessoa. Já Natasha Faria vasculhou a história musical da geração setentista para montar o show Canções do Exílio, que ao lado do músico Moacir Bedê. “Mas, nesse caso, é uma homenagem que nós fazemos. Não é algo autoral”, explica.
Onde tocar
Apesar dos caminhos abertos décadas atrás, o cenário atual impõe fortes barreiras para quem quer manter uma carreira autoral. “Todo mundo depende de um circuito institucional. São os eventos da prefeitura, os editais, o Dragão do Mar. Não existe um mercado privado que sustente a cena”, aponta Gustavo Portela. “Tem o Órbita, que abre um projeto para o trabalho autoral. Já que o território é de desertificação cultural, eu valorizo isso”, acrescenta Oscar.
    Outros espaços foram citados, como o Salão das Ilusões, que abre espaço para trabalhos alternativos. No entanto, dificuldades com divulgação e formação de público acabam tornando o show pouco ou nada rentável. Outro fator que faz parte da cena é que boa parte dos estabelecimentos prefere apostar em bandas cover (que se dedicam a reproduzir outras bandas). “Nosso alcance é limitado. A gente vive um contexto onde a música é muito mais entretenimento do que arte. O espaço que fica para a apreciação é muito pequeno”, lamenta Oscar.
Financiamento
Quando o assunto é o financiamento para essa produção, os editais são o caminho mais comum, mas que também traz seus problemas. “O grande exemplo é o edital da Caixa (Cultural), onde você tem que competir com gente como o Alceu Valença. Isso é ridículo”, comenta Natasha Faria, acrescentando que a instituição coloca todas as linguagens artísticas, e todos os artistas, concorrendo numa mesma categoria.
    Outros problemas recorrentes nos editais se referem ao atraso nos pagamentos, falta de divulgação das atividades, descontinuidade ou o baixo valor oferecido nos prêmios. “O edital não sai no dia que é pra sair, fica de pagar e não paga, fica de divulgar e não divulga”, diz Caio Castelo. E Gustavo Portela acrescenta: “As assessorias de comunicação do Estado e da Prefeitura são insuficientes e você acaba tendo que ter o próprio assessor para divulgar o show. O que representa mais custo. No fim, você não vive do trabalho autoral. Você precisa trabalhar (em outras áreas) para sustentar o trabalho de música”.
Oscar Arruda, inclusive chegou a tentar financiar seu novo disco, o recente Revolução (2012), via Edital, mas não foi aprovado. Acabou bancando toda a produção do próprio bolso. “Foi até melhor não ter sido aprovado. Talvez, ainda estivesse esperando a grana sair”, explica.
Produção
Para além das dificuldades de trabalhar com música, a produção autoral continua efervescente sob vários aspectos. É grande a variedade de estilos explorados e a qualidade vem acompanhando esse crescimento. “Apesar dessas dificuldades estruturais, a produção musical tem melhorado, tanto do ponto de vista técnico como estético. A gente tem dificuldades é de acesso aos canais nacionais. Esse passo além, para acontecer num cenário maior, ainda é um problema”, diz Oscar Arruda, que aponta a falta de produtores executivos como um gargalo. “É muito difícil agenciar shows pra fora. Essa coisa da produção independente te coloca desafios imensos”.
    O Carnaval, que ganhou um impulso forte nos últimos anos, também ajudou a mexer com a cena musical. Mesmo os artista que não são diretamente ligados às marchinhas, sambas ou maracatus, podem dar um jeito de se beneficiar da movimentação que período momino gera. É o que pondera Natasha Faria, que esse ano integrou o bloco As Gata Pira, ao lado de um grupo que incluía, entre outros, as cantoras Paula Tesser e Soledad Brandão.
Acesso ao público
Problemas urbanos quase nunca são citados como algo que interfere na vida cultural. No entanto, problemas com transporte público, estacionamentos e segurança muitas vezes impedem o público de se aventurar a sair de casa. “O público está aberto aos novos artistas à medida que ele sai de casa”, adianta Ayrton Pessoa. O lado bomSegundo os convidados da reportagem, a proximidade com os outros artistas cearenses é um incentivador para continuar. “É aqui onde eu sinto mais vitalidade para criar. Tenho muitos parceiros, muitos músicos bons e a identidade desse lugar, de fazer a nossa música”, explica Oscar.
    “Tem essa efervescência que é empolgante. Por haver essa identidade, os caminhos estão se construindo”, acrescenta Caio Castelo. “O tempo vai melhorando e, com isso, você vai tendo mais respeito. O tempo de estrada também te faz crescer e algumas coisas vão ficando mais fáceis”, segue Gustavo Portela. “Apesar dessas coisas que foram ditas, eu sinto que, em tudo que eu fiz, tive sucesso”, comenta Ayrton Pessoa.
Saiba mais
As capas e o cadernoO Vida & Arte Cultura convidou Oscar, Ayrton, Caio, Natasha e Gustavo a interpretarem capas marcantes da história da música cearense. O resultado ilustra esta e as páginas a seguir. No entanto, sob nenhum aspecto, essa “brincadeira gráfica” deve ser interpretada como uma influência direta do trabalho de um no outro. As heranças, eles contam ao longo do caderno
O ORIGINAL
ALUCINAÇÃO BELCHIOR
Na foto ao lado, a bossa do músico Oscar Arruda fazendo as vezes de Belchior na capa do disco de1976 que consagrou o cantor. No repertório, “Apenas Um Rapaz Latino-Americano”, “Como Nossos Pais” e “Velha Roupa Colorida”, entre outras.