Páginas

domingo, 20 de janeiro de 2013

Uma gata chamada Gatinha - FERREIRA GULLAR

Quando acordo no meio da noite, sinto aquela presença estranha e logo sei que a folgada ali se instalou    Eu tinha um gato que se chamava Gatinho, nome esse que lhe foi dado por meu filho Marcos. É que ninguém sabia que nome pôr no pequenino siamês, que acabáramos de comprar. Gatinho viveu 16 anos e, quando morreu, sofri tanto que decidi nunca mais criar gato nenhum.
    E mantive essa decisão até que, um dia, minha amiga Adriana Calcanhoto surpreendeu-me, trazendo, de presente, uma gatinha siamesa, que logo se meteu debaixo do sofá da sala. Foi um custo tirá-la de lá.
    Mas esse foi só primeiro problema que sua vinda para minha casa me criou. Logo surgiu outro: ela só comia ração, e uma única e determinada ração. Era uma gatinha moderna, nascida e criada num pet shop.
    Adriana a trouxe com um pacote de ração, que acabou. Fui comprar outro e, como não tinha igual, comprei uma ração de outro tipo qualquer, que a gatinha rejeitou, de imediato. Cheirou e foi embora.
    Saí em busca da ração igual a que ela costumava comer, mas não achei. Ela ficou dias de jejum e eu entrei em pânico. Telefonei para Adriana, que logo providenciou a entrega em minha casa da única ração que a gatinha comia e que não se achava em parte alguma.
    A solução era, portanto, acostumá-la a comer outra ração, mais fácil de encontrar no meu bairro. O cara me explicou: você começa misturando a ração que ela come, com qualquer outra que você comprar. Assim fiz e deu certo. Um sossego. Faz dois anos que a gatinha come a nova ração que compro numa loja aqui perto de casa.
    Fora isso, essa gatinha é um barato. Se é verdade que ela não é nada sociável, em mim ela confia cegamente e se derrete em meiguices. É certo que passa boa parte do dia escondida, mas, quando aparece, atira-se no chão e entrega a barriguinha para eu a acariciar.
    O Gatinho não era assim, certamente por ser macho. Era carinhoso, como todo siamês, mas não se entregava dessa maneira aos meus afagos. Era coisa de amigos, de homem para homem. Já Gatinha (esse é o nome que pus nela), não, quer mais é carinho mesmo.
    Gatinha dorme comigo na minha cama, e com uma particularidade: deixa que eu me ajeite e vai se colocar exatamente entre as minhas pernas, bem aconchegada. Quando acordo no meio da noite, sinto aquela presença estranha e logo sei que a folgada ali se instalou. Isso quando faz frio; quando faz calor, ela prefere a ponta do colchão, que é mais fresco.
    Mas isso é comigo, só comigo e mais ninguém. Se estamos os dois na sala -eu na minha poltrona predileta, ela a meu lado, e soa a campainha do porteiro elétrico, ela salta da poltrona e dispara pelo corredor. Some de vez. Só aparece muito tempo depois que o intruso foi embora: aparece na porta do corredor, espiando e farejando o tempo todo para se certificar de que não há mais risco nenhum.
    Até aí, tudo bem, cada doidinha com a sua mania. O que não me agrada é outra mania sua: a de urinar no tapete da sala. Primeiro, mijou numa das poltronas, tivemos que retirar as almofadas e lavá-las. Para evitar novos problemas, cobri a poltrona com um plástico. Aí, ela mijou no tapete. Lavamos o tapete e o cobrimos com plástico também; pois ela, todos os dias, acorda vai até a sala e urina no plástico. Antes assim, porque o plástico é facilmente lavável e não guarda cheiro.
    No princípio, eu ficava furioso e ralhava com ela, que não estava nem aí para minhas ameaças. E voltava a urinar ali mesmo. Conformei-me, a Maria limpa; se ela não estiver, limpo eu. Virou rotina.
   "Pior é minha gata", diz Maria, "que mija nos sapatos das visitas". De qualquer modo, apesar de tudo, acho melhor ter um gato (ou gata) do que não ter.
    Mas isso não me livra de, a cada momento, me defrontar com novas e difíceis situações. Neste fim de semana, fui comprar a ração da Gatinha e soube que o fabricante deixara de fornecê-la. Fiquei preocupado.
    "Faz 20 dias que ele não nos envia essa ração." Saí à procura em outras lojas do bairro, mas de nada adiantou: o fornecedor parara de fornecer. Liguei para meu neto, que mora no Humaitá e pedi a ele que a procurasse nas lojas de lá. Em vão. Comprei então uma ração parecida com a dela e pus em seu prato. Vamos ver se ela come.
Da Folha de S. Paulo