‘O som ao redor’, do pernambucano Kleber Mendonça Filho, “é um dos melhores
filmes feitos recentemente no mundo”
Nesta Bahia maltratada, vi, sozinho, o filme de Kleber Mendonça Filho e fiquei estarrecido. Raramente um diretor encontra com tanta precisão o tom do filme que deve e quer fazer. “O som ao redor” é um desses raros momentos em que tudo acontece de modo adequado sem que a obra seja apenas suficiente: o filme transcende, inspira, ensina e exalta. Ensina aprendendo. Esperando o jeito de dizer surgir dos atores e dos não atores como confirmação da sabedoria na construção dos diálogos. Não há pontes nem Marco Zero, não há sobrados nem maracatu. Mas os prédios feios, as decorações tolas, a fantasmagórica percepção do dia a dia dos recifenses de agora deixa entrever todas as nuances da sociedade pernambucana, de toda a sociedade brasileira mirada daquele ângulo. Todo o horror mas também toda a beleza se revela a cada lance de montagem, a cada som de máquina ou de voz, a cada escolha de ponto de vista.
A“Festa” de Gonzaguinha — imperdoavelmente ausente do bom “Gonzaga de pai para filho” — está presente aqui, mesmo sem ser ouvida. A começar pela própria existência do filme. Que um filme assim tenha sido feito em Pernambuco, com gente de lá e por gente de lá, é prova da beleza intrínseca que se possibilita nessa quina nordestina do Brasil.
Ouvir a canção (ou paródia de canção) carnavalesca baiana irritando alguns moradores e trabalhadores desses prédios das redondezas da Boa Viagem (“Perigo de tubarões”, diz uma placa), isso dentro do cinema Glauber Rocha na Praça Castro Alves, é experimentar uma espécie peculiar de iluminação. A mãe de família interpretada pela extraordinariamente sexy Maeve Jinkings é de tirar o fôlego e de apertar o coração. A sobriedade e a profunda verdade de cada milimétrico gesto de Irandhir Santos preparam a cabeça do espectador para estudar tudo o que o filme tem a dizer. E o sotaque pernambucano!... As nuances das diferenças da língua entre gerações e extrações sociais. Os mais jovens e mais urbanos palatalizam mais os tês e os dês. O nome do primo encrenqueiro de João é tudo entre Dinho e Dginho na escala que vai do avô coronel ao primo cosmopolita.
Em “Gonzaga de pai para filho” há pernambuco e há cinema. Ainda não vi “A febre do rato”. “Gonzaga” não é um filme pernambucano. Em “Gonzaga” falta Ivan Lins e o MAU, falta Som Livre Exportação, sobretudo falta “Festa”, o elo perdido entre o filho e o pai. Canção que é também uma obra-prima. Em “O som ao redor” ela ecoa forte, à roda dos sons divinamente editados, dos pátios dos edifícios, da trilha magnífica de DJ Dolores, do mar barrento. Um tal filme ter sido feito no Recife diz da beleza que ele é. Não senti falta, em “Gonzaga”, da menção ao papel secundário e pequeno que o movimento tropicalista desempenhou na redescoberta de Gonzagão pelo público jovem da época. Eu teria posto algo a respeito apenas do “Luiz Gonzaga volta pra curtir”, show que, acho, Waly Salomão dirigiu no Terezão (por que, aliás, mudar o nome do Tereza Rachel para Net Rio? A Net poderia manter o nome consagrado — ou assumir logo Terezão — e colocar-se como patrocinadora: um dia essas empresas vão ver que não é gostoso ter teatros e casas de espetáculos com nomes tipo Credicard Hall, ATL Hall, American Airlines Arena…), mas a ausência de “Festa” é sintoma de falha do roteiro. Ouço-a ao ver “O som ao redor”. Onde, aliás, o tropicalismo recebe uma homenagem que só não considero imerecida porque, sendo a escolha tão profundamente pensada e a inserção do trecho da gravação tão incrivelmente bem feita, minha reação é de gratidão infinita por ter minha voz, minha pobre voz, fazendo parte desse filme. Mais do que a minha, a voz transcendental de Jorge Ben. Mais do que ela, seu violão. Mais do que o violão, a canção e o que ela sugere.
Não posso deixar de pensar em Eduardo Campos e na seriedade da política em Pernambuco. Eu aqui nessa Bahia maltratada. Sou o cara que canta a peça de axé hilária que soa no filme. Sou o cara que a compõe. Fico, do meu canto, esperando qual será a consequência dos planos de Carlinhos Brown de abrir espaço especial para os blocos afro no carnaval de Salvador. Ele sempre enriquece a cultura popular da cidade. Não vai ser para este ano, como eu esperava. Clarindo não será, como imaginávamos e queríamos seus admiradores, o subprefeito do Pelourinho. Mas Neto deve saber o que está fazendo. E Clarindo há de ver dias (e noites) melhores na Cantina da Lua.
“O som ao redor” é um dos melhores filmes brasileiros de sempre. É um dos melhores filmes feitos recentemente no mundo. Gonzaga, Brown, Clarindo, axé, Glauber, Ivan Lins, todos se engrandecem com isso. Deve-se isso ao tom encontrado por Kleber.
Nesta Bahia maltratada, vi, sozinho, o filme de Kleber Mendonça Filho e fiquei estarrecido. Raramente um diretor encontra com tanta precisão o tom do filme que deve e quer fazer. “O som ao redor” é um desses raros momentos em que tudo acontece de modo adequado sem que a obra seja apenas suficiente: o filme transcende, inspira, ensina e exalta. Ensina aprendendo. Esperando o jeito de dizer surgir dos atores e dos não atores como confirmação da sabedoria na construção dos diálogos. Não há pontes nem Marco Zero, não há sobrados nem maracatu. Mas os prédios feios, as decorações tolas, a fantasmagórica percepção do dia a dia dos recifenses de agora deixa entrever todas as nuances da sociedade pernambucana, de toda a sociedade brasileira mirada daquele ângulo. Todo o horror mas também toda a beleza se revela a cada lance de montagem, a cada som de máquina ou de voz, a cada escolha de ponto de vista.
A“Festa” de Gonzaguinha — imperdoavelmente ausente do bom “Gonzaga de pai para filho” — está presente aqui, mesmo sem ser ouvida. A começar pela própria existência do filme. Que um filme assim tenha sido feito em Pernambuco, com gente de lá e por gente de lá, é prova da beleza intrínseca que se possibilita nessa quina nordestina do Brasil.
Ouvir a canção (ou paródia de canção) carnavalesca baiana irritando alguns moradores e trabalhadores desses prédios das redondezas da Boa Viagem (“Perigo de tubarões”, diz uma placa), isso dentro do cinema Glauber Rocha na Praça Castro Alves, é experimentar uma espécie peculiar de iluminação. A mãe de família interpretada pela extraordinariamente sexy Maeve Jinkings é de tirar o fôlego e de apertar o coração. A sobriedade e a profunda verdade de cada milimétrico gesto de Irandhir Santos preparam a cabeça do espectador para estudar tudo o que o filme tem a dizer. E o sotaque pernambucano!... As nuances das diferenças da língua entre gerações e extrações sociais. Os mais jovens e mais urbanos palatalizam mais os tês e os dês. O nome do primo encrenqueiro de João é tudo entre Dinho e Dginho na escala que vai do avô coronel ao primo cosmopolita.
Em “Gonzaga de pai para filho” há pernambuco e há cinema. Ainda não vi “A febre do rato”. “Gonzaga” não é um filme pernambucano. Em “Gonzaga” falta Ivan Lins e o MAU, falta Som Livre Exportação, sobretudo falta “Festa”, o elo perdido entre o filho e o pai. Canção que é também uma obra-prima. Em “O som ao redor” ela ecoa forte, à roda dos sons divinamente editados, dos pátios dos edifícios, da trilha magnífica de DJ Dolores, do mar barrento. Um tal filme ter sido feito no Recife diz da beleza que ele é. Não senti falta, em “Gonzaga”, da menção ao papel secundário e pequeno que o movimento tropicalista desempenhou na redescoberta de Gonzagão pelo público jovem da época. Eu teria posto algo a respeito apenas do “Luiz Gonzaga volta pra curtir”, show que, acho, Waly Salomão dirigiu no Terezão (por que, aliás, mudar o nome do Tereza Rachel para Net Rio? A Net poderia manter o nome consagrado — ou assumir logo Terezão — e colocar-se como patrocinadora: um dia essas empresas vão ver que não é gostoso ter teatros e casas de espetáculos com nomes tipo Credicard Hall, ATL Hall, American Airlines Arena…), mas a ausência de “Festa” é sintoma de falha do roteiro. Ouço-a ao ver “O som ao redor”. Onde, aliás, o tropicalismo recebe uma homenagem que só não considero imerecida porque, sendo a escolha tão profundamente pensada e a inserção do trecho da gravação tão incrivelmente bem feita, minha reação é de gratidão infinita por ter minha voz, minha pobre voz, fazendo parte desse filme. Mais do que a minha, a voz transcendental de Jorge Ben. Mais do que ela, seu violão. Mais do que o violão, a canção e o que ela sugere.
Não posso deixar de pensar em Eduardo Campos e na seriedade da política em Pernambuco. Eu aqui nessa Bahia maltratada. Sou o cara que canta a peça de axé hilária que soa no filme. Sou o cara que a compõe. Fico, do meu canto, esperando qual será a consequência dos planos de Carlinhos Brown de abrir espaço especial para os blocos afro no carnaval de Salvador. Ele sempre enriquece a cultura popular da cidade. Não vai ser para este ano, como eu esperava. Clarindo não será, como imaginávamos e queríamos seus admiradores, o subprefeito do Pelourinho. Mas Neto deve saber o que está fazendo. E Clarindo há de ver dias (e noites) melhores na Cantina da Lua.
“O som ao redor” é um dos melhores filmes brasileiros de sempre. É um dos melhores filmes feitos recentemente no mundo. Gonzaga, Brown, Clarindo, axé, Glauber, Ivan Lins, todos se engrandecem com isso. Deve-se isso ao tom encontrado por Kleber.
De O Globo