Muito melhor do que enfrentar o inimigo no campo de batalha é solapar o moral
de seus soldados
Falei aqui de uma China que, em pleno século 18, se julgava um império
celestial, centro do mundo civilizado, e que considerava todos os demais povos
como bárbaros. Isso está no livro de Henry Kissinger "Sobre a China". Mas se
você continua lendo-o, tem outras surpresas, como se verá.
A civilização chinesa, diferentemente da ocidental, não criou uma religião
que prometesse a salvação da humanidade, nem acreditava em vida após a morte.
Guiou-se fundamentalmente pelo pensamento de um filósofo chamado Confúcio, cuja
sabedoria estava voltada para a solução de problemas do mundo real.
Confúcio ensinava que o fundamental para cada um é conhecer seu lugar e
buscar uma harmonia superior. Nesse sentido, o imperador era concebido como um
soberano supremo da raça humana, a ligação entre o céu, a Terra e a humanidade.
Se se desviasse do caminho da virtude, o mundo se tornaria um caos.
Dá, assim, para imaginar a responsabilidade que pesava sobre seus ombros. Por
isso mesmo, o protocolo insistia no reconhecimento de sua condição soberana
no
"kowtow" -um ato de completa prostração, a que todos estavam obrigados diante
dele, tocando o chão três vezes com as costas, a cada reverência.
Essa mescla, que une a divinização do imperador e do próprio reino chinês a
uma compreensão prática da vida e da política, é uma das surpreendentes
originalidades da China. Tal visão pragmática decorre dos ensinamentos de
Confúcio, que ajudaram a formar uma espécie de sacerdócio de funcionários
-eruditos, selecionados por meio de exames realizados em todo o país e
encarregados de manter a harmonia nos outros domínios do imperador.
Essa elite administrativa desenvolveu uma visão política que norteava as
decisões do governo em face das questões que surgiam com os que lhe invadiam o
território.
Em vez de tentar derrotar e submeter aqueles "bárbaros", tratava de
dividi-los, e se aproveitava dessa divisão para jogá-los uns contra os outros.
"Favorecemos um lado ou outro e deixemos que lutem entre si", escreveu um
funcionário da dinastia Ming.
Como observa Kissinger, em raras ocasiões os estadistas chineses arriscaram o
resultado de um conflito em uma única batalha de tudo ou nada. O seu estilo,
pelo contrário, era usar de elaboradas manobras de longa duração. Não é por
acaso que o jogo mais antigo da China é o "wei qi", que implica submeter o
adversário a um cerco estratégico. Múltiplas batalhas são disputadas
simultaneamente em diferentes pontos do tabuleiro. No final do jogo, o tabuleiro
está repleto de domínios estratégicos parcialmente interligados e o vencedor nem
sempre é fácil de identificar. É o contrário do jogo de xadrez jogado no
ocidente, em que a vitória é total e óbvia.
A finalidade do jogo, aqui, é o xeque-mate. Disso resulta que, se o xadrez é
uma batalha decisiva, o "wei qi" é uma campanha prolongada. Se o jogo de xadrez
visa à vitória total, o "wei qi" busca a vantagem relativa. O jogador de "wei
qi" precisa avaliar não só as pedras que estão no tabuleiro, como também os
reforços que o adversário está em condições de mobilizar. É um jogo que ensina a
arte do cerco estratégico, e nisso se assemelha à teoria militar chinesa, que
igualmente busca a vantagem psicológica e procura evitar o conflito direto, como
ensina o célebre tratado "A Arte da Guerra", de Sun Tzu, escrito há mais de
2.000 anos.
Conforme observa Kissinger, o que distingue essa teoria militar da teoria
ocidental é a ênfase nos elementos psicológicos e políticos, em vez dos
puramente militares. Os estrategistas ocidentais testam suas convicções pelas
vitórias nas batalhas, enquanto Sun Tzu as testa pelas vitórias em que as
batalhas não foram necessárias.
Sun Tzu pergunta em que o estadista deve se mostrar prudente, e responde que
a vitória não é simplesmente o triunfo das armas e, sim, a realização dos
objetivos políticos que o conflito militar pretendia assegurar.
Por isso, muito melhor do que enfrentar o inimigo no campo de batalha é
solapar o moral de seus soldados. No fundo, a estratégia militar, segundo ele,
resolve-se em uma disputa psicológica. A suprema vitória consiste em vencer o
inimigo sem travar qualquer combate.
Da Folha