A comunidade jurídica unanimemente se manifesta contrária ao projeto de
Código Penal que tramita no Senado Federal por proposta do seu presidente, José
Sarney. A reação à pretensão de se impor à Nação um Código Penal feito às
pressas, que atinge a segurança e a liberdade de todos, se fez imediata ao se
tomar conhecimento do texto.
Em seminário promovido pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais
(IBCCrim), o maior encontro nacional de estudiosos do Direito Penal, foi lançado
manifesto com mais de 2 mil assinaturas. Nesse manifesto se acentuava o
preocupante uso de conceitos e termos jurídicos com impropriedade e o traslado
piorado de tipos penais da legislação esparsa.
Em encontro promovido no Rio de Janeiro pela Escola da Magistratura e pelo
Ministério da Justiça, presentes penalistas de todo o Brasil, emitiu-se carta
aberta na qual se destacou a notável pobreza teórica do projeto, razão pela qual
se concluía pela radical negação da proposta como um todo.
Em Ato em Defesa do Direito Penal realizado dia 24 último no salão nobre da
Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, 19 entidades, as mais
representativas do mundo jurídico, como a OAB federal, o Ministério Público de
São Paulo, a Defensoria Pública, o Instituto dos Advogados Brasileiros, a
Associação dos Advogados de São Paulo, bem como outras organizações que
congregam advogados ou promotores, lançaram nota ao Senado na qual se apontava
ser o projeto um conjunto normativo destituído de técnica jurídica, sem sistema
e com graves deficiências, seja ao conceituar institutos da teoria do crime (por
exemplo: tentativa, coautoria), seja ao criar tipos penais, concluindo-se haver
apenas um único caminho: sobrestamento de sua tramitação.
Todos, em uma só voz, se levantam contra o projeto, mas o Senado insiste em
manter a votação em prazo exíguo, com desculpas as mais esfarrapadas. À questão
de por que se ter realizado o trabalho em apenas seis meses, a resposta é: assim
determina o Regimento do Senado. Ao se indagar o motivo pelo qual não houve uma
comissão revisora, como sempre se deu ao longo do tempo com relação a
anteprojetos de código, a resposta é a mesma: o regimento do Senado não prevê
tal comissão.
Acima da prudência e do bom senso, elege-se o regimento como uma tábua
mandamental. A quem se deve responsabilizar pela prepotência de fazer o Senado
surdo e cego diante de tantos alertas e manifestos?
Ao ler o projeto, não se espante com o absurdo constante de um artigo: leia o
seguinte. Além dos esdrúxulos tipos penais já muitas vezes lembrados - como o de
molestamento de cetáceo -, cabe trazer para conhecimento do leitor outras
aberrações jurídicas.
Ao se definir o denominado estado de necessidade (que justifica a ação
realizada para salvar um direito posto em perigo certo e atual), elimina-se um
dado essencial: a inexistência de outro meio de evitar o perigo. É o caso dos
náufragos que disputam uma única boia: por não haver outra maneira de impedir o
perigo de afogamento, legitima-se um náufrago a tomar para si a boia. Só se
justifica essa ação se não houver outra forma de proteção do direito à própria
vida. Mas o projeto inova, não mais exigindo que a ação lesiva de terceiro (o
outro náufrago) seja o único modo de evitar o perigo. Assim, se existir outro
meio de preservar o direito, nem por isso, pelo projeto, deixará de se
reconhecer o estado de necessidade. Fica ao alvitre do agente escolher o modo
mais fácil de se salvar, mesmo que venha, desnecessariamente, a causar a morte
de terceiro.
Cria-se o crime de corrupção no setor privado (objeto, aliás, de meu último
artigo nesta página), mas se faz de modo totalmente errado. Ignora-se que a
corrupção pode ser praticada por qualquer empregado ou diretor, em
descumprimento do dever de probidade para obter vantagem indevida, prevendo-se
no projeto, todavia, que há corrupção apenas se o agente for representante legal
da empresa - artigo 167 -, tornando-se, então, a figura penal letra morta.
O projeto define gestão fraudulenta - artigo 354 -, um dos crimes apontados
no processo do mensalão e punido pela atual lei dos crimes financeiros com a
pena de três a 12 anos de reclusão. Mas, ao fazê-lo, consegue piorar a redação
legislativa já falha, ao estatuir que constitui gestão fraudulenta praticar ato
fraudulento na gestão de instituição financeira. Ora, uma figura assim descrita
pode ser tudo; porém é punida com pena de um ano a quatro anos de prisão,
favorecendo boa parte dos mensaleiros, visto a lei mais benéfica retroagir.
Cria o projeto o crime de terrorismo, consistente em causar terror na
população com o fim de forçar autoridades públicas a fazer o que a lei não
exige, realizando sequestros, saques, sabotamento de meios de comunicação, etc.
Mas considera que não há crime de terrorismo se a conduta individual ou coletiva
for de pessoas movidas por propósitos sociais ou reivindicatórios, desde que os
objetivos e meios sejam compatíveis e adequados à sua finalidade. Assim, os atos
de terror dos movimentos sociais de sem-teto ou sem-terra poderão ser
lícitos.
Lembro, também, o crime de genocídio, bem definido na Lei n.º 2.889/1956, mas
que se tipifica no projeto - artigo 459 - como ato pelo qual se vem, com o
propósito de destruir um grupo, a lesionar ou matar apenas uma única pessoa!
Por fim, vejam só: a briga de galo é crime segundo o artigo 395, punindo-se
quem participa de confronto de animais com dois a seis anos de prisão,
exatamente a pena da lesão corporal grave, quando se causa a alguém enfermidade
relevante e incurável ou cegueira de um olho. Mas se o animal morre a pena
dobra: quatro a 12 anos de prisão!
O Projeto Sarney é um passeio pelo absurdo. A quem interessa levar avante
essa proposta, mesmo em face das denúncias de suas graves impropriedades?
Miguel Reale Júnior - Advogado, professor titular da Faculdade de Direito da
USP; membro da Academia Paulista de Letras; foi ministro da Justiça - O Estado
de S.Paulo