No Brasil, os mais ricos recebem do governo 13 vezes mais que a
turma do Bolsa Família
JÁ DEVE ser insuportável para os ufanistas de plantão receber a notícia,
contida em relatório da ONU, de que o Brasil é o quarto país mais desigual de
uma região, a América Latina, que é a mais desigual do mundo.
O Brasil só é menos desigual que dois Estados semifalidos, Guatemala e
Honduras, e que a Colômbia, em virtual guerra civil faz mais de meio século.
Tenho, no entanto, um adendo triste para os ufanistas: é quase certo que não
houve, ao contrário do que diz a ONU, uma redução na desigualdade brasileira.
Explico: o único metro usado para medir a desigualdade chama-se índice de
Gini, no qual o zero indica perfeita igualdade e 1 é o cúmulo da desigualdade. O
Brasil de fato melhorou, de 1999 a 2009: seu índice passou de 0,52 para 0,47.
Acontece que o índice mede apenas a diferença entre salários. Não consegue
captar a desigualdade mais obscena que é entre o rendimento do capital e o do
trabalho.
Escreve, por exemplo, Reinaldo Gonçalves, professor titular de economia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, um dos raros economistas que continuaram
de esquerda após o PT chegar ao poder:
"Com raras exceções, essas políticas [as do governo Lula] limitam-se a
alterar a distribuição da renda na classe trabalhadora (salários, aposentadorias
e benefícios) sem alterações substantivas na distribuição funcional da renda,
que inclui, além do salário e das transferências, as rendas do capital (lucro,
juro e aluguel)."
Há pelo menos um dado que faz suspeitar seriamente de que a tal distribuição
funcional da renda piorou: no ano passado, o governo federal dedicou 5,72% do
PIB ao pagamento de juros de sua dívida. Já o Bolsa Família, o programa de ajuda
aos mais pobres, consumiu magro 0,4% do PIB.
Resumo da história: para 13.330.714 famílias cadastradas no Bolsa Família,
vai 0,4% do PIB. Para um número infinitamente menor, mas cujo tamanho exato se
desconhece, a doação, digamos assim, é 13 vezes maior.
Como é possível, nesse cenário, que se repete ano após ano, reduzir-se a
desigualdade na renda?
O que, sim, diminuiu foi a pobreza, no Brasil como na América Latina. Em 20
anos (até 2009), a taxa de pobres caiu de 48% para 33%, informa a ONU. Mesmo
nesse capítulo, o Brasil continua mal na foto: Argentina, Chile e Uruguai têm
12% de pobres, enquanto, no Brasil, a taxa quase duplica (22%).
Essa queda ajuda a explicar a popularidade de Lula/Dilma, Hugo Chávez, Rafael
Correa, Michelle Bachelet (mais popular que seu sucessor, o conservador
Sebastián Piñera), Evo Morales (em queda, mas ainda popular), José Mujica.
Para o pobre, que mal podia comprar arroz, adquirir geladeira importa mais do
que saber se o rico, que já podia comprar um arrozal inteiro, compra agora
helicópteros ou aviões, em vez de geladeiras, que sempre teve.
Mas os governos supostamente de esquerda e suas políticas pró-pobres não
foram capazes de tirar a América Latina do papel de campeã mundial da
desigualdade. Ou ela é inoxidável ou eles precisam reinventar-se.
Da Folha