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domingo, 22 de abril de 2012

Beleza não tem época - FERREIRA GULLAR

Há nessas gravuras algo que tanto lembra cartas de baralho quanto símbolos heráldicos
    A GRAVURA é uma das mais significativas expressões das artes plásticas brasileiras modernas.
    É também hoje um dos pontos mais críticos desse campo de criação, precisamente pelo que mais caracterizadamente a qualifica: seu caráter eminentemente artesanal, ou seja, situa-se no polo oposto à arte conceitual -tida como a mais avançada das tendências artísticas.

Para quem acredita nisso, a gravura será uma expressão obsoleta, fora de época. Só que beleza não tem época.
    Não obstante, convém observar que a gravura se afirmou como expressão autônoma no momento em que, na Europa, ao final do século 19, o desenvolvimento industrial chegou ao auge, com a produção crescente de máquinas e equipamentos, inclusive com a invenção da fotografia.
    Embora alguns pintores da época tenham se valido da fotografia para imprimir maior realismo a suas telas, logo o inevitável aconteceu: a linguagem realista da arte entrou em crise, e uma das consequências foi que a gravura deixou de ser simples meio de reprodução gráfica para se tornar linguagem criadora, autônoma.
    Exemplo disso são as obras de Edvard Munch e dos expressionistas alemães, como Kirchner e Rottluff. Um deles, Alfred Kubin, foi professor de um jovem brasileiro chamado Oswaldo Goeldi, que se tornaria um dos mestres da moderna gravura no Brasil, juntamente com Lívio Abramo.
    Assim se inicia a fase de ouro de nossa gravura moderna, em que se destacariam os nomes de Marcelo Grassmann, Darel Valença, Anna Letycia, Rubem Grillo -que nos honra como ilustrador desta coluna- e Gilvan Samico, que é, na verdade, o assunto desta crônica.
    Conheço Samico há muitos anos, desde a época em que era um jovem artista de Pernambuco, onde reside até hoje. Aliás, reside num casarão do século 17, onde teria morado João Fernandes Vieira, o líder da luta pela expulsão dos holandeses.
    Mas, segundo Samico, trata-se de "um herói sem nenhum caráter, pior do que Macunaíma". Sucede que, se sei disso, é porque acabo de ler um belo livro sobre sua obra, recentemente lançado pela editora Bem-Te-Vi e escrito por Weydson Barros Leal, poeta e crítico de arte também pernambucano.
    Samico, no começo, estudou no Rio com Oswaldo Goeldi, por um mês apenas. Depois estudou com Lívio Abramo em São Paulo, com quem aprimorou a técnica de gravar, tanto no linóleo quanto na madeira. Lívio o aconselhava a usar qualquer madeira, inclusive as das caixas de frutas que eram jogadas nas ruas.
    Talvez porque o que importava, então, era conquistar o domínio técnico da goiva e vencer as carências de uma placa de madeira pouco nobre. Com isso, Samico aprendeu que a melhor madeira é a de cada um, mas também que a "madeira de topo", por sua dureza, permite com maior precisão definir a linha gravada. E isso é fundamental em sua arte, caracterizada pela limpidez e pela precisão.
    Limpidez e precisão no executar, em definir as figuras, estruturar a composição e escolher com apuro as cores. Sim, porque, no mais, a arte de Samico é sonho, delírio e poesia.
    Rara e surpreendente conjugação de opostos: se no começo suas gravuras nos mostravam cenas mágicas, em que a figura humana, os bichos e as plantas se integravam, isso mudou; essas cenas foram substituídas por composições geométricas rigorosas, dentro das quais, com o mesmo rigor formal, surgem imagens inesperadas -que tanto podem ser serpentes, como répteis, como aves- que parecem enigmas, cenas simbólicas ou lendárias que dispensam decifração.
    E, não obstante, queremos decifrá-las, ou melhor, de fato não o queremos, porque necessitamos de preservar-lhes o enigma, o encantamento. Há nessas gravuras de grande tamanho algo que tanto lembra cartas de baralho (um baralho mágico) quanto símbolos heráldicos.
    Não gostaria de encerrar este comentário sobre a arte de Gilvan Samico sem assinalar um traço especial que distingue a sua gravura da dos demais gravadores brasileiros. É que nela a lição dos mestres modernistas se funde à linguagem popular da gravura de cordel -herança portuguesa que sobreviveu na cultura popular nordestina-, incutindo-lhe a significação e a beleza da grande arte.