Meus olhos se enchem d'água e o passado me invade. É perda, mas, ao mesmo tempo, alegria
"Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça..." Assim começa o samba "Garota de Ipanema", uma das obras-primas da bossa nova. Consta que esse samba nasceu no bar Veloso, que hoje tem o nome da música e fica na esquina da Prudente de Morais com a antiga Montenegro, chamada agora Vinicius de Moraes.
Pois bem, naquela época eu morava ali mesmo na rua Montenegro, quase em frente ao Veloso e também, como os demais moradores do bairro, com barraca e cadeira de praia, fazia o mesmo percurso a caminho do mar.
Mas, naquela época, minha turma não era a da música, e sim a das artes plásticas, cuja nova bossa era, então, o concretismo, que tinha seu quartel-general ali perto, na Visconde de Pirajá, entre a Montenegro e a Farme de Amoedo, no apartamento de Mário Pedrosa. Ali se reuniam, quase toda semana, Ivan Serpa,
Lygia Clark, Aluísio Carvão, Amilcar de Castro, Lygia Pape, Abraham Palatnik, Franz Weissmann...
Se a bossa nova resultava numa ruptura com a música popular em voga, em que imperavam o bolero e o dó de peito, o concretismo rompia com a tradição modernista nas artes plásticas, cujo principal expoente, na época, era Portinari.
Se se leva em conta que a pintura deste tratava de temas históricos e sociais, o concretismo, limitando-se a composições geométricas, era, como a bossa nova, um modo também de falar baixo.
De qualquer modo, vivíamos uma época de mudanças, tanto assim que, em 1955, se elege um presidente da República bossa nova, Juscelino Kubitschek, que decide construir uma nova capital para o Brasil e chama Oscar Niemeyer para inventar Brasília.
Mas as mudanças não ficaram no terreno das artes. Avançaram para o campo político-ideológico, com a luta pela reforma agrária e contra o imperialismo norte-americano. Cria-se o CPC da UNE, que se volta para a música dos subúrbios e se envolve com as escolas de samba. Mais tarde, após o golpe de 1964 e a criação do teatro Opinião -que era o CPC com outro nome-, o samba das escolas invade a zona sul do Rio.
Já então me afastara do concretismo, do neoconcretismo e mergulhara na luta política e na poesia social. Vinicius se junta aos jovens baianos e faz um show em nosso teatro. Tornamo-nos amigos desde então e essa amizade vai nos juntar, durante meu exílio em Buenos Aires, aonde ele ia fazer shows e terminou se apaixonando por uma moça argentina, quase 30 anos mais nova que ele. E ainda teve a coragem de ir pedir-lhe a mão aos pais dela, bem mais jovens que ele.
Todas essas lembranças, tumultuadamente, tomavam-me a mente, enquanto assistia ao filme de Nelson Pereira dos Santos e Dora Jobim, "A Música Segundo Tom Jobim", feito a muitas mãos, inclusive as de Miúcha.
O filme começa com o "Samba do Avião" e estende-se num sobrevoo sobre a cidade: o aterro do Flamengo ainda em obras, a praia de Botafogo, passa pelo Pasmado, depois pelo Túnel Novo, desemboca na Princesa Isabel e eis que estou na entrada da Barata Ribeiro, percurso que faço até hoje, várias vezes por semana.
É o outrora agora, de que fala Fernando Pessoa. Meus olhos se enchem d'água e o passado inteiro me invade. É perda, mas, ao mesmo tempo, alegria, pois só a música é capaz de nos dar isso.
E mais vertigem está por vir e já sei que virá e espero que venha, o coração batendo forte. A cada aparição de Tom Jobim, ora jovem e lindo, ora já sessentão e charmoso, a imagem do talento e da doçura, que doce ele era, sempre pronto a reconhecer e valorizar o talento do outro. É o que o filme nos mostra, sem uma palavra, sem uma legenda, nas cenas que se sucedem sempre iluminadas por sua música.
Não por acaso, essa música encantou o mundo, seduziu cantores e instrumentistas de muitos países e muitas línguas, que a executam, diante de nós, visivelmente tomados por ela, sejam eles Frank Sinatra, Sarah Vaughan ou Dizzy Gillespie. Mas a emoção maior foi ver e ouvir de novo aquelas canções na voz de Elizeth, Maysa, Elis, Nara e Adriana. Senti falta de Astrid e João Gilberto, que não aparecem no filme. Soube-se que ele é que não permitiu.
Pois bem, naquela época eu morava ali mesmo na rua Montenegro, quase em frente ao Veloso e também, como os demais moradores do bairro, com barraca e cadeira de praia, fazia o mesmo percurso a caminho do mar.
Mas, naquela época, minha turma não era a da música, e sim a das artes plásticas, cuja nova bossa era, então, o concretismo, que tinha seu quartel-general ali perto, na Visconde de Pirajá, entre a Montenegro e a Farme de Amoedo, no apartamento de Mário Pedrosa. Ali se reuniam, quase toda semana, Ivan Serpa,
Lygia Clark, Aluísio Carvão, Amilcar de Castro, Lygia Pape, Abraham Palatnik, Franz Weissmann...
Se a bossa nova resultava numa ruptura com a música popular em voga, em que imperavam o bolero e o dó de peito, o concretismo rompia com a tradição modernista nas artes plásticas, cujo principal expoente, na época, era Portinari.
Se se leva em conta que a pintura deste tratava de temas históricos e sociais, o concretismo, limitando-se a composições geométricas, era, como a bossa nova, um modo também de falar baixo.
De qualquer modo, vivíamos uma época de mudanças, tanto assim que, em 1955, se elege um presidente da República bossa nova, Juscelino Kubitschek, que decide construir uma nova capital para o Brasil e chama Oscar Niemeyer para inventar Brasília.
Mas as mudanças não ficaram no terreno das artes. Avançaram para o campo político-ideológico, com a luta pela reforma agrária e contra o imperialismo norte-americano. Cria-se o CPC da UNE, que se volta para a música dos subúrbios e se envolve com as escolas de samba. Mais tarde, após o golpe de 1964 e a criação do teatro Opinião -que era o CPC com outro nome-, o samba das escolas invade a zona sul do Rio.
Já então me afastara do concretismo, do neoconcretismo e mergulhara na luta política e na poesia social. Vinicius se junta aos jovens baianos e faz um show em nosso teatro. Tornamo-nos amigos desde então e essa amizade vai nos juntar, durante meu exílio em Buenos Aires, aonde ele ia fazer shows e terminou se apaixonando por uma moça argentina, quase 30 anos mais nova que ele. E ainda teve a coragem de ir pedir-lhe a mão aos pais dela, bem mais jovens que ele.
Todas essas lembranças, tumultuadamente, tomavam-me a mente, enquanto assistia ao filme de Nelson Pereira dos Santos e Dora Jobim, "A Música Segundo Tom Jobim", feito a muitas mãos, inclusive as de Miúcha.
O filme começa com o "Samba do Avião" e estende-se num sobrevoo sobre a cidade: o aterro do Flamengo ainda em obras, a praia de Botafogo, passa pelo Pasmado, depois pelo Túnel Novo, desemboca na Princesa Isabel e eis que estou na entrada da Barata Ribeiro, percurso que faço até hoje, várias vezes por semana.
É o outrora agora, de que fala Fernando Pessoa. Meus olhos se enchem d'água e o passado inteiro me invade. É perda, mas, ao mesmo tempo, alegria, pois só a música é capaz de nos dar isso.
E mais vertigem está por vir e já sei que virá e espero que venha, o coração batendo forte. A cada aparição de Tom Jobim, ora jovem e lindo, ora já sessentão e charmoso, a imagem do talento e da doçura, que doce ele era, sempre pronto a reconhecer e valorizar o talento do outro. É o que o filme nos mostra, sem uma palavra, sem uma legenda, nas cenas que se sucedem sempre iluminadas por sua música.
Não por acaso, essa música encantou o mundo, seduziu cantores e instrumentistas de muitos países e muitas línguas, que a executam, diante de nós, visivelmente tomados por ela, sejam eles Frank Sinatra, Sarah Vaughan ou Dizzy Gillespie. Mas a emoção maior foi ver e ouvir de novo aquelas canções na voz de Elizeth, Maysa, Elis, Nara e Adriana. Senti falta de Astrid e João Gilberto, que não aparecem no filme. Soube-se que ele é que não permitiu.
Da Folha