O cientista político e historiador, Christian Lynch, usou o exemplo da grande mídia sobre a nomeação do economista Marcio Pochmann à presidência do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) para ilustrar os aspectos estruturais do debate ideológico, como o “cosmopolitismo periférico” dos liberais brasileiros e a intolerância no meio acadêmico. Confira:
A “polêmica Pochmann” revela aspectos estruturais do debate ideológico que nada têm que não tem a ver com a qualidade, nem o caráter do Pochmann ou da Simone Tebet. A primeira delas é o famoso “cosmopolitismo periférico” dos liberais brasileiros.
Os cosmopolitas periféricos se veem como “cidadãos do mundo moderno”, mas esse mundo na verdade se resume aos EUA e os outros países que falam inglês. Acreditam que ciência, filosofia e teoria são universais, mas esse universo curiosamente só existe no Atlântico Norte.
O liberal brasileiro como “cidadão do mundo” se vê como representante da cultura, da filosofia, da teoria anglófona em uma periferia. O Brasil é percebido em um lugar periferico, atrasado, é tudo que se produz nele tende a ser percebido como qualitativamente inferior.
O cosmopolita periferico não gosta do Brasil, preferia morar fora. Só gosta de aspectos do país que não tema ver com a sua civilização humana, como a natureza, ou culinária, ou aspectos da cultura que repetem padrões do Atlântico Norte ou por ele reconhecidas, como bossa nova.
Para o cosmopolita periferico, o único modo de ser “cidadão do mundo” é como cônsul do que se pensa ou se produz no “universo” (Atlântico Norte) na periferia, ocupando o mesmo lugar de tradutor ou intermediário cultural exercido pelas elites no tempo em que o Brasil era colônia.
Por conseguinte, o cosmopolitismo periferico acha que o Brasil é um lugar problematico, porque sua cultura é diferente da americana, e que ele só se levantará no dia em que abrir todos os seus poros para a cultura que fala inglês e se tornar uma espécie de 51o. estado americano.
Do ponto de vista acadêmico, nada que se produz que não esteja alinhado com o que se faz no atlântico norte tem valor científico. O debate teórico de lá nunca é pensado como tendo a ver com problemas ou aspectos da cultura de lá, porque o Atlântico Norte é o “universo” inteiro.
Para o cosmopolita periferico, o que está fora do Atlântico Norte são colônias incapazes de produzir teoricamente algo de valor sobre seus próprios problemas. Os problemas da periferia são sempre os mesmos do “centro”.
A boa ciência brasileira é aquela que vai a reboque da que está na moda no Atlântico Norte, e seus bons centros de pesquisa são aqueles que lhe dão a impressão de “não estar no Brasil”. Quem não trabalha nessa chave, sequer é considerado acadêmico.
O curioso e ainda mais ideológico no cosmopolitismo periferico dos liberais é que a produção intelectual do próprio centro não se resume à produção de orientação ideológica liberal. Lá tem de tudo. Mas só é considerado universal o que vier do Atlântico Norte & for liberal.
É óbvio que não há como produzir ciência sem pretensão a universalidade, e que há muita porcaria que se produz em nome da autonomia do decolonial ou do nacionalismo exagerado. Não defendo aqui nem um nem outro, porque ambos produzem muito maus resultados.
Chamo só a atenção para o fato de que a militância ideológica está no exagero das duas pontas, ou seja, tanto no caráter colonizado do cosmopolitismo periferico quanto do eventual nativismo do nacionalismo periferico, que frequentemente prima pelo improvisado ou falta de rigor.
O segundo ponto para o qual gostaria de chamar a atenção é para a intolerância no meio acadêmico. Um acadêmico que produz algo de que você não gosta porque não partilha da sua concepção de ciência não é um “não acadêmico”, “um falso acadêmico”. É só um “mau acadêmico”.
Eu discordo de uma porção de gente na academia, à esquerda e à direita, por serem demasiado ideológicos ou militantes, mas não posso em São consciência negar que sejam meus colegas. Se são doutores e fazem pesquisa, são meus colegas.
E a qualidade acadêmica não tem a ver com a militância em si. Todo mundo que escreve para o público, que tem coluna em jornal e revista, emite opinião e é portanto “militante” em algum grau. Foucault, Weber, Keynes, Hayek, eram todos acadêmicos e militantes. Aqui é a mesma coisa.
Então academia e militância, ou intelectualidade pública pelo exercício público da razão, não são atividades incompatíveis, nem interdependentes. Podem ser bem feitas ou mal feitas, juntas e separadas, tanto por simpáticos aos tucanos quanto por simpáticos aos petistas.
Ideologias, temos todos. A questão é o seu grau, e se dela conseguimos conscientemente separar os papéis, que devem ser desempenhados de forma distinta, e em lugares distintos, para ser bem desempenhados, com capacidade e responsabilidade nas duas pontas.
Claro que, quando se está filiado a um partido, a coisa fica complicada, porque o grau de comprometimento ideológico tende a se elevar. Mais ainda quando se trata de um seu intelectual orgânico, como o Jessé ou Pochmann, cujos méritos acadêmicos não avalio, para não fulanizar.
O intelectual de partido tende a não produzir boa ciência, porque tende a ir a reboque da política partidária. Mas mesmo assim, isso depende da maior ou menor qualidade do acadêmico, se ele sabe ou não separar as coisas. Então, convém não generalizar, e julgar caso a caso.
Poderá ficar horas aqui falando desse assunto, mas minha paciência acabou. Abraços a quem conseguiu chegar até aqui.