Uma visão crítica das coisas
O poeta diz que o socielismo não faz mais sentido, recusa o rótulo de direitista e ataca: "Quando ser de esquerda dava dinheiro, ninguém era. Agora que dá prêmio, todo mundo é"
Pedro Dias Leite
Um dos maiores
poetas brasileiros de todos os
tempos, Ferreira Gullar, 82 anos, foi militante do Partido Comunista Brasileiro
e, exilado pela ditadura militar, viveu na União Soviética, no Chile e na
Argentina. Desiludiu-se do socialismo em todas as suas formas e hoje acha o
capitalismo "invencível". E autor de versos clássicos — "À vida falta uma parte
/ — seria o lado de fora — / para que se visse passar / ao mesmo tempo que passa
/. e no final fosse apenas / um tempo de que se acorda / não um sono sem
resposta. / À vida falta uma porta". Gullar teve dois filhos afligidos pela
esquizofrenia. Um deles morreu. O poeta narra o drama familiar e faz a defesa da
internação em hospitais psiquiátricos dos doentes em fase aguda. Sobre seu
ofício, diz: "Tem de haver espanto, não se faz poesia a frio".
0 senhor já
disse que "se bacharelou em subversão" em Moscou e escreveu um poema em que a
moça era "quase tão bonita quanto a revolução cubana". Como se deu sua desilusão
com a utopia comunista?
Não houve
nenhum fato determinado. Nenhuma decepção específica. Foi uma questão de
reflexão, de experiência de vida, de as coisas irem acontecendo, não só comigo,
mas no contexto internacional. É fato que as coisas mudaram. O socialismo
fracassou. Quando o Muro de Berlim caiu, minha visão já era bastante crítica. A
derrocada do socialismo não se deu ao cabo de alguma grande guerra. O fracasso
do sistema foi interno. Voltei a Moscou há alguns anos. O túmulo do Lenin está
ali na Praça Vermelha, mas pelo resto da cidade só se veem anúncios da
Coca-Cola. Não tenho dúvida nenhuma de que o socialismo acabou, só alguns
malucos insistem no contrário. Se o socialismo entrou em colapso quando ainda
tinha a União Soviética como segunda força econômica e militar do mundo, não vai
ser agora que esse sistema vai vencer.
Por que o
capitalismo venceu?
O capitalismo
do século XIX era realmente uma coisa abominável, com um nível de exploração
inaceitável. As pessoas com espírito de solidariedade e com sentimento de
justiça se revoltaram contra aquilo. O Manifesto Comunista, de Marx, em 1848, e
o movimento que se seguiu tiveram um papel importante para mudar a sociedade. A
luta dos trabalhadores, o movimento sindical, a tomada de consciência dos
direitos, tudo isso fez melhorar a relação capital-trabalho. O que está errado é
achar, como Marx diz, que quem produza riqueza é o trabalhador e o capitalista
só o explora. É bobagem. Sem a empresa, não existe riqueza. Um depende do outro.
O empresário é um intelectual que, em vez de escrever poesias, monta empresas. É
um criador, um indivíduo que faz coisas novas. A visão de que só um lado produz
riqueza e o outro só explora é radical, sectária, primária. A partir dessa
miopia, tudo o mais deu errado para o campo socialista. Mas é um equívoco
concluir que a derrocada do socialismo seja a prova de que o capitalismo é
inteiramente bom. O capitalismo é a expressão do egoísmo, da voracidade humana,
da ganância. O ser humano é isso, com raras exceções.
O capitalismo é
forte porque é instintivo. O socialismo foi um sonho maravilhoso, uma realidade
inventada que tinha como objetivo criar uma sociedade melhor. O capitalismo não
é uma teoria. Ele nasceu da necessidade real da sociedade e dos instintos do ser
humano. Por isso ele é invencível. A força que toma o capitalismo invencível vem
dessa origem natural indiscutível. Agora mesmo, enquanto falamos, há milhões de
pessoas inventando maneiras novas de ganhar dinheiro. É óbvio que um governo
central com seis burocratas dirigindo um país não vai ter a capacidade de ditar
rumos a esses milhões de pessoas. Não tem cabimento.
0 senhor se
considera um direitista?
Eu, de direita?
Era só o que faltava.A questão é muito clara. Quando ser de esquerda dava
cadeia, ninguém era. Agora que dá prêmio, todo mundo é. Pensar isso a meu
respeito não é honesto. Porque o que estou dizendo é que o socialismo acabou,
estabeleceu ditaduras, não criou democracia em lugar algum e matou gente em
quantidade. Isso tudo é verdade. Não estou inventando.
E
Cuba?
Não posso
defender um regime sob o qual eu não gostaria de viver. Não posso admirar um
país do qual eu não possa sair na hora que quiser. Não dá para defender um
regime em que não se possa publicar um livro sem pedir permissão ao governo.
Apesar disso, há uma porção de intelectuais brasileiros que defendem Cuba, mas,
obviamente, não querem viver lá de jeito nenhum. É difícil para as pessoas
reconhecer que estavam erradas, que passaram a vida toda pregando uma coisa que
nunca deu certo.
Como o
senhor define sua visão política?
Não acho que o
capitalismo seja justo.
O capitalismo é
uma fatalidade, não tem saída. Ele produz desigualdade e exploração. A natureza
é injusta. A justiça é uma invenção humana. Um nasce inteligente e o outro
burro. Um nasce inteligente, o outro aleijado. Quem quer corrigir essa injustiça
somos nós. A capacidade criativa do capitalismo é fundamental para a sociedade
se desenvolver, para a solução da desigualdade, porque é só a produção da
riqueza que resolve isso. A função do estado é impedir que o capitalismo leve a
exploração ao nível que ele quer levar.
Qual a sua
visão do governo Dilma Roussef?
Dilma é uma
mulher honesta, não rouba, não tem a característica da demagogia. Mas ela foi
posta no poder pelo Lula. Assim, não tem autoridade moral para dizer não a ele.
Nesse aspecto, é prisioneira dele.
Como o
senhor avalia a perspectiva de condenação dos réus do mensalão?
O julgamento
não vai alterar o curso da história brasileira de uma hora para a outra. Mas o
que o Supremo está fazendo é muito importante. É uma coisa altamente positiva
para a sociedade. Punir corruptos, pessoas que se aproveitaram de posições
dentro do governo, é uma chama de esperança.
O senhor se
identifica com algum partido político atual?
Eu fui do
Partido Comunista, mas era moderado. Nunca defendi a luta armada. A luta armada
só ajudou mesmo a justificar a ação da linha dura militar, que queria aniquilar
seus oponentes. Quando fui preso, em 1968, fui classificado como prisioneiro de
guerra. O argumento dos militares era, e é, irrespondível: quem pega em armas
quer matar, então deve estar preparado para morrer.
O senhor
condena quem pegou em armas para lutar contra o regime militar?
Quem aderiu à
luta armada foram pessoas generosas, íntegras, tanto que algumas sacrificaram
sua vida. Mas por um equívoco. Você tem de ter uma visão critica das coisas, não
pode ficar eternamente se deixando levar por revolta, por ressentimentos. A
melhor coisa para o inimigo é o outro perder a cabeça. Lutar contra quem está
lúcido é mais difícil do que lutar contra um desvairado.
Como se
justifica sua defesa da internação o tratamento da
esquizofrenia?
As pessoas usam
a palavra manicômio para desmoralizar os hospitais psiquiátricos. Internei meu
filho em hospitais que têm piscina, salão de jogos, biblioteca. Mesmo os
públicos não têm mais a camisa de força ou sala com grades. Tive dois filhos
esquizofrênicos. Um morreu, o outro está vivo, mas não tem mais o problema no
mesmo grau. Controlou com remédio, e a idade também ajuda. A esquizofrenia surge
na adolescência e se junta à impetuosidade. Com o tempo, a pessoa vai
amadurecendo. Doença é doença, não é a gente. Se estou gripado, a gripe não sou
eu. A esquizofrenia é uma doença, mas eu não sou a esquizofrenia. Posso evoluir,
me tornar uma pessoa mais madura, debaixo de toda aquela confusão. O
esquizofrênico com 50 anos não é o mesmo de quando tinha 17.
Qual o pior
momento na sua convivência com filhos esquizofrênicos?
Quando a pessoa
entra em surto, ela pode se jogar pela janela. Meu filho, o Paulo, se jogou.
Hoje ele anda mancando porque sofreu uma lesão na coluna. Ele conversava comigo,
via televisão, brincava, lia meus poemas. Em surto, não tinha controle. Queria
estrangular a empregada. Nessas horas, a única maneira é internar e medicar.
Nesse estado, sem nenhum socorro, o esquizofrênico pode fazer qualquer
coisa.
A família
pobre faz o quê, se não tem mais onde internar?
Se mantiver a
pessoa em casa, ela poderá tocar fogo em tudo, pegar uma faca e tentar
assassinar o pai. Poderá fugir para a rua, desvairada. Essa política contra os
hospitais psiquiátricos tem como resultado prático uma tragédia em que os ricos
internam seus filhos em clínicas particulares e os pobres morrem na rua. Quando
ouço alguém dizer que as famílias internam os filhos porque querem se ver livres
deles, só posso pensar que essa pessoa gosta dos meus filhos mais do que eu.
Nunca viu meu filho, mas ama meu filho mais do que eu. Absurdo. Você não sabe o
que é uma família ter um filho esquizofrênico. Além do problema do tratamento,
existe o desespero de não saber o que fazer. Os hospitais psiquiátricos
continuam a existir porque os médicos sabem que não há outra saída. Não se
interna um doente para que ele fique vinte anos lá dentro, mas sim três dias,
três meses. Meus filhos nunca ficaram internados além do tempo necessário. Eles
voltavam para casa normais. Era uma alegria. Nenhuma família quer ter seu filho
preso.
Como foi a
primeira vez que se defrontou com a doença?
O primeiro
surto do Paulo foi no exílio, em Buenos Aires. Um dia, no apartamento, a gente
estava brincando, a bola desceu pela escada, ele saiu para pegá-la e não voltou.
Desci, ele tinha sumido. Em que direção eu ando? Voltei para casa e fiquei
chorando, não sabia o que fazer. Paulo ficou meses sumido. Isso foi em 1974,
logo que cheguei a Buenos Aires. Terminei encontrando-o preso. No desvario, ele
tentou roubar um carro — não sabia nem dirigir — e foi preso. Fez greve de fome.
Estava esquelético.
O policial disse
que era preciso uma ordem para soltá-lo, porque era menor. Mas deixou que eu
levasse meu filho, porque sabia que ele estava doente. Levei o Paulo para casa.
Ele entrou e começou a arrebentar a janela. Morávamos no 5o andar. Ele foi
internado. Até o dia em que, esperto como é, sumiu do hospital, para sempre. Foi
encontrado em São Paulo. Saiu de Buenos Aires sem um tostão, com a roupa do
corpo. Esses episódios não têm fim.
Como é seu
método para fazer poesia?
Já fiquei doze
anos sem publicar um livro. Meu último saiu há onze anos. Poesia não nasce pela
vontade da gente, ela nasce do espanto, alguma coisa da vida que eu vejo e que
não sabia. Só escrevo assim. Estou na praia, lembro do meu filho que morreu. Ele
via aquele mar, aquela paisagem. Hoje estou vendo por ele. Aí começo um poema...
Os mortos veem o mundo pelos olhos dos vivos. Não dá para escrever um poema
sobre qualquer coisa.
O mundo
aparentemente está explicado, mas não está. Viver em um mundo sem explicação
alguma ia deixar todo mundo louco. Mas nenhuma explicação explica tudo, nem
poderia. Então de vez em quando o não explicado se revela, e é isso que faz
nascer a poesia. Só aquilo que não se sabe pode ser poesia.
A idade é
uma aliada ou uma inimiga do poeta?
Com o avanço da
idade, diminuem a vontade e a inspiração. A gente passa a se espantar menos. Tem
poeta que não se espanta mais, mas insiste em continuar escrevendo, não quer se
dar por vencido. Então ele começa a escrever bobagens ou coisas sem a mesma
qualidade das que produzia antes. Saber fazer ele sabe, mas é só técnica, falta
alguma coisa. Não se faz poesia a frio. Isso não vai acontecer comigo. Sem o
espanto, eu não faço. Escrever só para fazer de conta, não faço. Eu vou morrer.
O poeta que tem dentro de mim também. Tudo acaba um dia. Quando o poeta dentro
de mim morrer, não escrevo mais. Não vou forçar a barra. Isso não vai acontecer.
Toda vez que publico um livro, a sensação que tenho é de que aquele é o
definitivo. Escrever um poema para mim é uma grande felicidade. Se não
acontecer, não aconteceu.