domingo, 14 de janeiro de 2018

Os campos poéticos de Vitor Ramil



Músico faz show de lançamento de seu belo disco em São Paulo


Vitor Ramil é um artista muito ligado a seu chão, à sua terra, o Rio Grande do Sul – mesmo que suas influências musicais transitem de forma bem abrangente, entre a canção brasileira e a internacional. Por causa desse olhar muito afetivo em relação ao Estado – e a Pelotas, onde nasceu e vive até hoje –, sua obra vem impregnada dessa paixão em letra e música. E foi de uma história local que Ramil criou o conceito de seu novo disco autoral, Campos Neutrais (também lançado em versão songbook), que o músico, cantor e compositor apresenta em São Paulo, em show no Sesc Pinheiros, no dia 4 de fevereiro, às 18h.

Segundo historiadores, instaurou-se uma zona neutral na fronteira do Estado, após a assinatura do Tratado de Santo Ildefonso, em 1777, pelos reinos de Portugal e Espanha. Essa área estava delimitada entre os territórios de espanhóis e portugueses. Ficou conhecida como Campos Neutrais, atraindo povos de diversos idiomas, origens, culturas. Um símbolo de liberdade, diversidade. A áurea dessa Torre de Babel em terras gaúchas conduz a essência das 15 canções inéditas (assinadas só por ele e algumas em parceria) do novo álbum, ora com letras em português, ora em espanhol, ora em inglês, e numa propulsão de temas e ritmos.

“Na hora que fui selecionar o repertório do disco, eu tinha muita música inédita, e eu tinha essa canção, Campos Neutrais, que, para mim, era a que mais me parecia norteadora em termos de harmonia, letra, melodia, de tudo”, conta Ramil, ao Estado. “Fui me dando conta de que eu tinha músicas em mais de um idioma; tinha versão para música do Bob Dylan; poema do António Botto, poeta português; parcerias com Chico Cesar e Zeca Baleiro.” Ele, então, se deu conta que estava ali, no interior do Rio Grande do Sul, e “estava trabalhando com todas essas linguagens, de várias partes, e isso era um pouco parecido com a ideia dos Campos Neutrais, de mistura de sotaques, de gente”. “Até politicamente seria um conceito interessante para os dias de hoje, que são dias de xenofobia. Não foi algo pensado, mas fui me dando conta que, de certa forma, essa ideia estava na atualidade.”

Um dos belos discos lançados em 2017, Campos Neutrais tem como ponto de partida a voz e os violões de Ramil, e todos outros instrumentos, como a percussão do argentino Santiago Vazquez e os metais do Quinteto Porto Alegre, se agregam, se misturam a eles. O álbum começa com a faixa-título, numa combinação de berimbaus, bombo leguero e os metais (estes dão um tom grandioso, dramático à canção). “Sobre as raízes levantadas/De mil figueiras arrancadas/A lua estende o seu vestido fino”, traz o trecho inicial. Parceria com Zeca Baleiro, Labirinto se envereda pelo amor e pela dor num encadeamento de versos imagéticos. Poesia pura.

A proximidade geográfica do Rio Grande do Sul com Uruguai e Argentina faz com que o idioma espanhol seja parte do dia a dia de quem mora na região, sobretudo nos municípios fronteiriços ou nas imediações deles. Daí as canções Lado Montaña, Lado Mar,e Duerme, Montevideo terem sido compostas por Ramil naturalmente. “Tenho avô galego, pai uruguaio, avó materna uruguaia, meu avô paterno é da Espanha, tenho passaporte espanhol, meus filhos têm. Na nossa família isso é bem presente. Mas a cidade em que eu vivo, Pelotas, sempre teve muitos uruguaios”, diz. “Para mim, Buenos Aires é uma metrópole muito mais de referência hoje em dia do que São Paulo ou Rio.”



Inspiração em Beatles e Bob Dylan

Fab Four são reverenciados em ‘Satolep Fields Forever’ e o poeta da música (e Nobel de Literatura), em ‘Ana’, versão de ‘Sara’


Em Campos Neutrais, a faixa Satolep Fields Forever nos transporta imediatamente para o universo dos Fab Four. Qualquer referência à Strawberry Fields Forever – e àquela paisagem onírica – não é mera coincidência. “Não existia mais Beatles quando tomei consciência deles, mas a gente tinha todos os discos em casa, meus irmãos eram beatlemaníacos e me tornei também”, lembra Vitor Ramil. “Essas coisas não se explicam muito: eu estava fazendo essa música, é uma milonga, e, quando vi, eu estava cantando ‘Satolep Fields Forever’”. Vale o parênteses: a expressão Satolep (Pelotas, ao contrário) surgiu quando Ramil estava saindo da adolescência e, desde aquela época, está muito presente na obra musical e literária dele. “Não quero falar de Pelotas, quero falar da minha visão de Pelotas, o que essa cidade representa para mim, a minha cidade mítica.”

Imbuído dessa sensação de que os Beatles “estão presentes todo o tempo”, Ramil compôs Angel Station. Mas o primeiro lampejo veio de uma cena que o músico viu no metrô de Londres: um rapaz passou por ele trazendo na camiseta os dizeres ‘fuck the gap’, numa alusão bem-humorada ao tal ‘mind the gap’ que ressoa pelas estações de trem e metrô londrinos. “Saí dali e já fiz a música. Fiz uma história e uma letra bem Beatles, dos primórdios.”

Seu outro ídolo, Bob Dylan, também é reverenciado, na música Ana, versão em português que Ramil fez para Sara, do álbum Desire (1976). Assim como na canção original, em que Dylan cantava sua Sara, Ramil canta sua Ana. “Ele fala do Chelsea Hotel, em Nova York, e eu falo do Grande Hotel em Pelotas. Ele fala dos sinos de uma igreja metodista, eu falo dos sinos da catedral da minha cidade. Gosto muito das músicas do Dylan. As pessoas têm uma tendência a dizer: ‘Dylan é um bom poeta, mas as músicas são sempre iguais’. Cada um tem seu gosto, mas acho que ele é uma potência musical.”

VITOR RAMIL ‘Campos Neutrais’ Satolep Music; R$ 35 (CD) e R$ 45 (songbook)