sábado, 6 de janeiro de 2018

O Globo - Um caminho chamado Brasil

ANA LUCIA AZEVEDO

Muita gente sonha grande. O montanhista Edson Sorrentino sonhou do tamanho do Brasil. No próximo dia 12, ele dará o primeiro passo rumo à concretização dos seus planos: aos 58 anos, caminhará por praias e trilhas do Chuí ao Oiapoque, o Brasil de um extremo a outro, totalizando 10 mil quilômetros em 500 dias. À medida que avançar, tentará mostrar que é possível estabelecer no país uma trilha de longo curso pelo litoral. Percorrerá o maior caminho brasileiro, todo ele em praias e unidades de conservação públicas e particulares.
Para o seu projeto, Sorrentino conseguiu o apoio do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). O órgão, que controla as unidades de conservação federais, reconheceu no projeto uma forma de mostrar a viabilidade da sua Rede Brasileira de Trilhas de Longo Curso. E esta é uma rede de ambições mais do que humanas, já que o objetivo é ligar pessoas, culturas e animais, permitindo que bichos passem em segurança de uma unidade de conservação a outra sem precisar correr os riscos das travessias urbanas. O montanhista vai testar tudo isso.
O projeto agora também já recebe apoio de unidades de conservação estaduais, municipais e particulares; trilheiros; outros montanhistas, como os integrantes da Federação Gaúcha de Montanhismo; prefeituras e da Universidade de Caxias do Sul. Todos vão prover acesso e companhia, em vários trechos. Já o dinheiro para os equipamentos e a comida saiu, em sua maior parte, do bolso do próprio Sorrentino, que mora com a mulher em Jardinópolis, em São Paulo. Patrocinadores ajudaram com alguns equipamentos.
O sonho pode parecer idealismo, mas a realidade está mais para foco e paixão. Sorrentino está longe de ser uma versão tropical de Forrest Gump. Montanhista experiente, tem na bagagem a escalada da maior parte das grandes montanhas do Brasil — incluindo a mais alta de todas, o Pico da Neblina (2.995 metros). E ainda os cumes do Aconcágua (ponto culminante do Hemisfério do Sul, com 6.961 metros), do Kilimanjaro (topo da África, com 5.895 metros) e Mont Blanc (cume da Europa Ocidental, de 4.808 metros). É instrutor de salvamento em montanha e em cavernas e tem curso de sobrevivência em selva. Em nada se aproxima do padre que tentou voar usando balões e munido de um GPS que não sabia usar: Sorrentino também entende de cartografia e navegação em montanhas. Já pedalou e caminhou por dias a fio pelo Brasil e outros países da América do Sul.
Com disposição de sobra, o montanhista chegou a 2017 aposentado de seu emprego como funcionário público, ainda em plena forma e sem uma grande meta que lhe desse norte na vida. Decidiu que começaria 2018 com o pé na trilha. Treinou para caminhar cerca de 25 quilômetros por dia, morro acima e morro abaixo, por praias e terrenos irregulares, sempre com uma mochila de 20 quilos de comida, água, roupa e equipamentos. Mapeou o litoral, dividiu a faixa litorânea em 280 pontos e estabeleceu metas. Encarar o Brasil de ponta a ponta exige preparo, coragem e dedicação.
— Sou trilheiro há 30 anos. Nunca pensei em parar. Resolvi usar o tempo livre da aposentadoria para conhecer lugares novos, passar por locais de importância histórica e ambiental. Realmente quero sentir o Brasil por inteiro — afirma ele.
CAMINHADAS COLETIVAS
Esta semana Sorrentino está no Sul para sua jornada rumo ao Norte. Começa a travessia no Arroio do Chuí, em Santa Vitória do Palmar, no Rio Grande do Sul, o extremo meridional do país. Parte rumo ao extremo setentrional do nosso litoral, o Cabo Orange, na foz do Rio Oiapoque, no Amapá. Logo de início, vai percorrer a praia mais extensa do mundo, a do Cassino, com 254 quilômetros de areia e vento, que começa no Chuí. De lá, seguirá tentando manter o caminho entre unidades de conservação e praias. Promete publicar tudo em sua página no Facebook e convida a todos que lhe façam companhia nas trilhas e nas praias:
— Gosto do contato com a natureza, mas adoro estar junto das pessoas. Vou postar as indicações dos lugares onde farei caminhadas coletivas.
Uma delas será no Rio, onde ele deve chegar em maio. Vai percorrer os 180 quilômetros da Transcarioca, a primeira trilha de longo curso do Brasil. O idealizador desse caminho, Pedro de Castro da Cunha e Menezes, hoje coordenador-geral de uso público e negócios do ICMBio, vê na travessia um símbolo da integração de trilhas e travessias com potencial turístico e de conservação.
— Em sua jornada, Edson Sorrentino percorrerá mais de cem unidades de conservação. É um longo caminho feito de trechos menores, que podem caber no tempo e na capacidade de qualquer pessoa — diz.
Ele mesmo sonhou há 30 anos com a Transcarioca. Como gestor no ICMBio, quer ver avançar o Sistema Brasileiro de Trilhas de Longo Curso. Em países como os EUA, essas trilhas atraem milhões de visitantes e geram recursos em turismo para as economias das comunidades vizinhas.
— Trilhas são instrumentos de sustentabilidade. Há o lado da conservação, por aproximar as pessoas da natureza, mas elas também fomentam uma economia sustentável, baseada em atividades integradas com o ambiente — destaca Menezes.
O percurso todo trilhado pelo montanhista será um dia, espera ele, a Trilha OiapoqueChuí, composta por uma miríade de trilhas menores. O presidente do ICMBio, Ricardo Soavinsky, quer receber mais visitantes nos parques nacionais e espera que a implementação de trilhas seja literalmente um dos caminhos. Pelo momento, Sorrentino ainda não faz ideia de como vencerá o que promete ser o maior de seus obstáculos, o vasto manguezal que ocupa boa parte do litoral do Amapá e está em seu caminho até o Cabo Orange:
— Ainda tenho tempo para planejar como farei essa última etapa. Temo pelos limites do meu corpo, a desidratação, a violência. Não é sensato não ter medo, mas acho que a compensação será muito maior. Unir o Brasil por trilhas é possível.