terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Mais cinco vidas - MARCUS FAUSTINI

Não é exagero dizer que há um extermínio de jovens pobres e negros.

Os cinco jovens mortos pela polícia neste final de semana haviam passado o dia no Parque de Madureira e comemoravam o primeiro salário de um deles. Morre com eles mais um pedaço do “Rio vivo” — aquele que trabalha, acredita na cidade e celebra a amizade que partilha de sonhos. O “Rio da morte” — esse que extermina jovens pobres, negros, moradores de favelas, periferias e proximidades — ganha mais um capítulo lambido de sangue com os mais de 50 tiros que foram disparados.
Não é a primeira vez que dedicamos a coluna a uma tragédia como essa e, infelizmente, tudo indica que não será a última. Os 50 tiros que alvejaram o carro onde estavam os jovens e os mataram são tiros que ceifam, de forma imperdoável, além de suas vidas, duas bases daqueles que acreditam que o Rio de Janeiro pode ser a cidade da vida. Morre com eles um pedaço do Parque de Madureira, um pedaço dos programas de trabalho e renda para jovens de origem popular.
O Parque de Madureira é um equipamento que, além de incentivar a ocupação pública do espaço urbano e ressignificar uma região, é a base de uma nova ideia de cidade por incentivar a circulação de pessoas de vários pontos para visitá-lo — colocando uma região do subúrbio do Rio como centralidade cultural. Quem nunca recebeu um convite ou ficou curioso de visitá-lo? E ao passar um dia por lá, vendo a diversidade de pessoas, não revigorou-se acreditando mais na cidade que vivemos? Os jovens que morreram acreditaram nisso e saíram de Costa Barros, na proximidades da comunidade do Morro da Lagartixa, para passar o dia lá. Do que adianta terem essa possibilidade se, ao voltarem pra casa, por serem negros, jovens e moradores de favelas, viraram alvo da sanha por sangue de uma polícia que nestas regiões atua na lógica de guerra?
O outro sentido do “Rio vivo” que morre com eles é o discurso e a promessa que o jovem pobre precisa, além de estudar, começar a vida trabalhando. Um deles havia começado a trabalhar no Programa Aprendiz, que dedica empregos a jovens menores de 18 anos. De que adianta trabalhar se ao comemorar seu primeiro salário você é alvo preferencial por estar com outros amigos negros dentro de um carro? Esses e outros discursos de potência da vida estão morrendo junto com eles. Fiquei pensando na minha possível parcela de culpa pelo incentivo que damos aos jovens de favelas e periferias que participam de projetos que realizamos a circularem na cidade, a acreditarem nos seus sonhos, a empreender, a participarem das redes de luta por direitos, a dialogar, a acreditarem nos encontros, a se manifestarem, marcarem presença. Por outro lado, a culpa também pode ser minha por acreditar que a presença nesta coluna contribuiria em alguma mudança, e perceber que as vezes ela só é mais uma distração do café da manhã das terças. Morre com eles a crença de muitos que batalham de diferentes formas por um Rio que garanta o direito a vida.
Nessas horas, tenho vergonha de ser branco, de saber que grande parte da mobilidade que consegui fazer, apesar de vir de origem popular, apesar de ter me dedicado com afinco em ações de arte e ação social que mudaram minha vida e contribuíram com outras vidas e territórios, isso tudo foi possível por ser branco, ou quase branco, e assim ser mais fácil imitar códigos dessa república carioca. Ao longo deste caminho, uma vez numa madrugada em Paciência, voltando de uma celebração com amigos para casa no Cesarão, em Santa Cruz, fomos parados pela polícia. Apenas meu amigo negro tomou tapa na cara. Saiba, caro leitor, que às vezes duvida dessas situações, não há nenhum exagero quando ativistas e pesquisadores apontam que existe um extermínio da juventude pobre e negra. Ele não é como nos filmes, num grande campo de concentração. Ele é pior, é dentro de nosso cotidiano, cirúrgica.
Quando ganhei meu primeiro salário, nos meus 16 anos, de menor auxiliar do Banco do Brasil, fui pra rua comemorar. Comprei meu primeiro vinil de rock e fui andar pela cidade. Um ritual que se repetiu ao longo do tempo para diminuir a sensação de esforço desmedido. Quando recebia salário, todo mês celebrava com amigos ou com pequenas delicadezas para mim. Ver um filme, uma peça de teatro, visitar as partes de Santa Teresa de onde era possível olhar a Zona Norte e Baixada no fim de tarde — algo que fortalecesse o sentido da vida. Errei ao acreditar que aquilo que foi minha base poderia se transformar num modelo que influenciaria uma cidade? Devemos jogar a toalha?