sábado, 7 de novembro de 2015

A poesia sobe o morro - O GLOBO

GUILHERME RAMALHO guilherme.ramalho@infoglobo.com.br

Convidados da quarta Festa Literária das Periferias se hospedam em comunidades do Leme, interagem com os moradores e ajudam a movimentar a economia local

Muito à vontade, o poeta holandês Dann Doesborgh passeia pelas ladeiras dos morros da Babilônia e do Chapéu Mangueira, no Leme. Pela primeira vez, os convidados da Festa Literária das Periferias (Flupp) estão hospedados em albergues nas próprias comunidades, onde acontece o evento, que está em sua quarta edição e termina amanhã. Os cerca de 80 hóspedes aproveitam a estada para vivenciar o dia a dia das favelas, interagindo com os moradores. Para Doesborgh, que nunca havia saído da Europa, a experiência está sendo fantástica.
GABRIEL DE PAIVAUm holandês na Babilônia. O poeta Dann Doesborgh: “As pessoas são maravilhosas. A paisagem, deslumbrante”
— As pessoas são maravilhosas. A paisagem, deslumbrante. Acordo de manhã e, enquanto faço café, vejo esse mar. Isso é demais! — comenta Doesborgh, de 27 anos, que se destaca por sua voz rouca, cabelos cumpridos e óculos redondos.
Segundo ele, que está hospedado na Babilônia, ainda há muito preconceito em relação às favelas:
— Antes de vir para cá, falavam para mim sobre a violência e os cuidados que eu deveria tomar. As pessoas não imaginam que eu possa andar tranquilamente à noite numa favela. Não tive problema nenhum. Mas é claro que sei que em outras comunidades pode ser diferente.
Nas outras três edições, realizadas no Morro dos Prazeres, em Vigário Geral e na Mangueira, os participantes ficaram hospedados no Catete. O escritor Julio Ludemir, de 55 anos, um dos idealizadores da festa literária, mora há dois anos no Chapéu Mangueira e admite que, por duas vezes, se sentiu inseguro para fazer o evento na comunidade, por causa da violência.
Segundo ele, ainda há problemas — como a falta d’água que ocorreu bem no no dia de abertura da Flupp, na terça-feira. Ludemir, no entanto, garante que o local tem infraestrutura suficiente para receber os hóspedes. Ele destaca ainda que o evento impulsionou o comércio local.
— A economia na favela vai fazendo com que ela se torne cada vez mais independente da boca de fumo. O tráfico não tem o mesmo poder que já teve. A boca está quebrada, apesar de ainda existir. O que vai mesmo consolidar o processo de pacificação não é a polícia, mas a capacidade da própria população de se impor ao tráfico de drogas. E isso será feito economicamente — disse.
Diretor de Artes do Conselho Britânico no Brasil, Luiz Coradazzi afirma que a estada nas favelas permite aos participantes terem um novo olhar sobre as comunidades:
— Demos a opção de os convidados ficarem na favela ou no asfalto. E todos resolveram ter a vivência na comunidade, até para ter contato com a cultura de raiz. Estão adorando a experiência.
A organização do evento espera receber mais de 20 mil pessoas durante o evento. As crianças são as que mais têm participado das atividades. Dona de uma lanchonete no Chapéu Mangueira, Carla Danielle Medina, de 39 anos, conta que, com o evento, seus dois filhos de 7 e 9 anos se apaixonaram por literatura e já rechearam a estante de casa com os livros doados na Flupp.
— A gente trabalha muito para dar o melhor para nossos filhos, mas isso não é tudo. Não tenho muito tempo para levar os meus filhos para bibliotecas gratuitas, nem sabia se eles gostariam. Na verdade, foram eles que me incentivaram a conhecer a Flupp. Agora, pedem todas as noites para eu contar histórias para eles.