terça-feira, 22 de outubro de 2013

A ficção da saúde - EDITORIAL DA FOLHA

Imagine a cena. No Brasil profundo, em uma cidade com menos de 20 mil habitantes, uma clínica médica resolve desviar recursos do Sistema Único de Saúde, o SUS.
    O golpe é simples. Trata-se de emitir recibos de procedimentos médicos nunca realizados e receber verbas como se o atendimento tivesse sido prestado. Para identificar o paciente, basta registrar pessoas mortas ou repetir até 201 vezes o nome de um mesmo indivíduo --ainda que para consultas efetuadas em um único dia.
    Não parece muito crível esse enredo, mas, não sendo um filme, a verossimilhança é irrelevante. Foi o que imaginou uma clínica oftalmológica de Água Branca, no Piauí. Segundo auditoria do Ministério da Saúde, as fraudes do estabelecimento, verificadas no ano de 2011, resultaram em extravio superior a R$ 2,5 milhões --valor que a pasta agora tenta reaver.
    Em Miranda do Norte, cidade do Maranhão com menos de 25 mil habitantes, outra situação surreal. No período de um ano, o hospital municipal atendeu 27,9 mil pessoas para tratamento de glaucoma --grupo de doenças que afetam o nervo óptico e atingem cerca de 5% da população, em geral nas faixas etárias mais avançadas.
    Foram tomados indevidamente dos cofres públicos, nesse caso, quase R$ 2 milhões.Conforme mostrou reportagem desta Folha no domingo, a esse desvio somam-se diversos outros, como aplicação irregular de recursos destinados à saúde, funcionários fantasmas, equipamentos não encontrados e licitações inexistentes.
    De 2008 a 2012, as fraudes custaram ao SUS pelo menos R$ 502 milhões, segundo 1.339 auditorias realizadas pelo governo federal.
Em termos relativos, o montante não chega a 1% do orçamento do Ministério da Saúde em 2012. Em valores absolutos, é suficiente para construir 227 UPAs (unidades de pronto atendimento) --hoje existem cerca de 270 em todo o Brasil.
    Como se já não fosse um absurdo, a cifra pode ser ainda maior, já que as investigações são feitas após denúncia ou por amostragem. Sem fiscalização mais eficiente, essa hemorragia de recursos públicos não será estancada.