sexta-feira, 9 de novembro de 2012

O Brasil que sai das urnas - FERNANDO GABEIRA

    Esse é o título de um artigo que me encomendou a Fundação Herbert Daniel. Resolvi levar a proposta ao pé da letra e destaquei o Brasil que saiu das urnas: eleitores que votaram nulo ou declararam em pesquisas que só votaram porque era obrigatório. Não só em São Paulo, como em todo o Brasil, muita gente deu as costas para a política. Aos partidos só interessa contabilizar os ganhos. Mas o crescimento da abstenção enfraquece o processo político.
    Um dos fatores de desencanto com a política é a corrupção. Mas não só ela deve ser focada. O julgamento do mensalão no STF é uma semente de confiança cujos frutos ainda não foram de todo colhidos. Esta semana o STF julgou também se o amianto deveria ser proibido. O Congresso Nacional não se manifestou sobre o tema. Havia projeto e inúmeras audiências foram realizadas, até com especialista estrangeiros. A maioria não se interessou.
    O declínio da política se expressa ainda nas questões que são decididas pela Justiça, pois os congressistas não querem abordá-las. Sem desmerecer o esforço do STF, o amianto é um tema político, pois transcende a proibição. Implica definição do phase-out, o tempo para desmobilizar a indústria existente, e recursos para transitar rumo a outras atividades econômicas. Muitas questões minoritárias têm sido transferidas para o STF. E alguns líderes desses movimentos consideram isso positivo, com o argumento de que o Congresso é conservador, logo, são maiores as chances de vitória entre os ministros do STF.
    Não importa se o Congresso é ou não conservador. As questões precisam passar por seu crivo, pois os eleitos foram escolhidos para isso: é a democracia. Os dois elementos combinados, corrupção e ausência do Congresso, contribuem para enfraquecer a legitimidade do processo político.
    O programa Brasil sem Miséria está sofrendo com desvios em várias cidades. A leitura de que não há rigor no combate à corrupção acaba ressuscitando a frase que tanto ouvimos no passado: ou todos se locupletam ou se restaure a moralidade.
    Muito se falou da influência do julgamento do mensalão nas eleições. Ele segue seu rumo, para além do processo eleitoral. Algumas penas ainda serão definidas e um condenado, Marcos Valério, quer depor de novo. Ele reaparece tocando em temas escolhidos a dedo para incomodar o PT: Lula sabia do mensalão? Como foi o assassinato de prefeito de Santo André? De onde surgiu o dinheiro apreendido pela Polícia Federal em 2006 com militantes do PT, os chamados aloprados? O PT acha um ultraje voltar a tais temas. Atribui esse incessante retorno aos adversários que não se conformam com o novo poder no País. Não parou para refletir sobre sua versão dos três fatos. Se o fizesse, entenderia que os adversários só se aproveitam de uma fragilidade incontestável: as histórias não convencem e fazem um permanente convite à busca da versão definitiva. São temas inescapáveis, mas não os únicos na agenda.
    O PT venceu em São Paulo e outras cidades metropolitanas. É a chance que tem de articular, a partir da capital, uma verdadeira aliança da metrópole para enfrentar seus maiores problemas. O fato de muitas cidades serem dirigidas pelo mesmo partido ajuda, mas não é condição necessária. Políticas metropolitanas deveriam ser articuladas entre partidos diferentes. Durante a campanha Dilma insinuou que seria mais fácil a cidade crescer em sintonia com o governo federal. A palavra que usou é a de sempre: parceria. A julgar pelo tom da campanha, as parcerias só se realizam entre partidos da mesma coligação. Salvador e Manaus, por exemplo, estariam fora dessa possibilidade. É este o principal argumento dos candidatos oficiais: se não votarem em mim, a cidade não vai obter recursos de Brasília.
    Na semana do furacão Sandy, Barack Obama fez questão de procurar o governador de Nova Jersey em busca de ajuda articulada. São de partidos diferentes. Mas ao menos tentam derrubar o mito segundo o qual um adversário deve ser tratado a pão e água para que não cresça. Numa cultura política em que o PT é o partido dominante e o objetivo parece ser isolar e destruir quem se opõe a ele, o gesto de Obama deveria ser considerado. Nos EUA havia um desastre em curso, dirão alguns. Mas o princípio da cooperação que vale para o desastre também é válido para grandes opções cotidianas.
    A atrofia da vida política brasileira manifesta-se ainda em outras áreas. Muitos abraçam a Petrobrás e se dispõem a lutar por ela como nos anos 50. Quando a empresa vê seu lucro reduzido e enfrenta dificuldades no abastecimento, não há nenhum debate, nem mesmo curiosidade sobre o que ocorreu por lá. Ao contrário, os deputados seguirão discutindo para onde vão os royalties do pré-sal, pois a divisão dos recursos parece ser sua única fixação.
    O Brasil talvez seja muito grande e complexo para sair totalmente modificado das urnas municipais. O distanciamento da política já era sensível nas eleições de 2010. No início do processo Lula dizia aos eleitores desinteressados: quem não gosta de política acaba sendo dominado por políticos que não escolheu. Era uma tentativa de fortalecer a ideia de mudança. Porém duas décadas depois nos vemos de novo diante de um divórcio entre parte da população e o sistema político. Não se trata apenas de repetir o estímulo à participação. Isso o TRE faz, tocando o Hino Nacional ao fundo de um anúncio celebrando as eleições. A questão agora é responder por que o processo de democratização chegou a este ponto. Seria uma reação comodista de pessoas satisfeitas com a vida material melhorada? Ou apenas nojo pela sucessão de escândalos em cachoeira desaguando em gavetas amigas?
    A corrupção generalizada e o suicídio do Congresso são apenas duas pistas. O julgamento do mensalão aparece como marco dessa longa história. Nele os dois elementos aparecem relacionados: dinheiro público contra voto parlamentar. Quem não gosta de política está sujeito a ser dirigido por políticos que despreza. Mas chega um tempo em que a questão não é mais gostar de política, e sim gostar de si próprio e do País. Nesse tempo, mesmo sem amar a política, os ausentes podem querer balançar o coreto. Seriam bem-vindos.
De O Estadão