quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Poesia que nasce do espanto

Ferreira Gullar lança Bananas Podres, que republica poemas de Vertigem do dia (1980) e Em alguma parte alguma (2010)

Diogo Guedes

    A banana que apodrece em uma quitanda lá do passado germina a memória. É do espanto – sempre ele – com as próprias lembranças que o maranhense Ferreira Gullar, principal poeta brasileiro vivo, cria parte da sua obra, descobrindo um mesmo momento de formas diferentes. Bananas podres (Casa da Palavra, 64 páginas, R$ 55) traz cinco poemas publicados em Vertigem do dia (1980) e  Em alguma parte alguma (2010), agora reunidos em edição com ilustrações do próprio autor
    Os versos, de forte visualidade, já tinham sido pensados para um projeto semelhante pela amiga do autor, Cláudia Ahimsa, que sugeriu a criação de um álbum com produções artísticas de Gullar e de outros pintores. Observando as manchas que fazia em jornais e papéis velho para limpar os pincéis, o poeta notou que elas lembravam a textura da podridão das bananas de sua infância. Assim, o maranhense resgatou a ideia e pensou em construir a obra a partir de suas colagens. “Quando terminei, achei que era melhor escrever os poemas à mão, até porque isso os valorizaria”, conta o escritor, em entrevista por telefone.
    Segundo ele, ao unir ilustrações e poemas, a ideia era criar uma nova experiência de leitura desses versos, associando linguagens completamente diversas. “Eu acredito que literatura e pintura de fato são intraduzíveis. O que a poesia diz, a pintura não diz, e vice-versa, cada linguagem cria os seus próprios significados. Eu não posso traduzir em linguagem o que diz a Sinfonia nº 5, de Beethoven. Assim, no livro, estou juntando as duas e criando um novo sentido para elas”.
    Na obra, as bananas podres, ainda que sejam uma imagem bruta e viva, são o mote para a recorrência de uma memória, de um momento específico da infância. Elas apareceram primeiro em Poema sujo (1976), ressurgindo quatro anos depois e novamente em 2010. “É uma coisa que envolve os sentimentos, envolve minhas lembranças da Segunda Guerra, um período excitante para um menino como eu. Esses elementos me marcaram muito, e, um dia, se despertaram em mim”, descreve Gullar.
    Dessa forma, uma recordação segue sendo material poético porque, mesmo já escrita, permanece insolúvel, indecifrável: “A poesia, como eu sempre disse, nasce do espanto. Não é como uma das crônicas que eu escrevo para jornais, quando eu escolho sobre o que quero falar. No poema eu não decido sobre o que escrevo. Eu nem sequer decido escrever”, explica.
    “Essas memórias voltam trazendo ideias, imagens e metáforas inesperadas, que vão sendo criadas ali, no momento da escrita. Eu não estou lembrando o que aconteceu, eu estou construindo uma memória”, diz. Assim, as recordações voltam constantemente, como ele diz em um dos poemas da obra: “mas o perfume daquelas frutas / que feito um relâmpago / desceu na minha carne / e ali ficou, parado, / esse de vez em quando / volta a esplender”.
    Para Gullar, é de uma relação complexa com a realidade que poema nasce. A literatura não revela o mundo, mas sim, a partir de algo que se mostra na vida, inventa a realidade. “É a súbita indagação que faz com que, de repente, algo não pareça estar explicado. Até porque o mundo só está explicado para quem o olha nas suas aparências”.
    Como bem expôs no poema que abre o seu livro anterior, Em alguma parte alguma, vencedor do Jabuti do ano passado, o que um poema diz é o que não existe antes de ser escrito, é o não-dito. Sua matéria-prima, além do espanto, é justamente o silêncio, as possibilidades da linguagem na folha ainda em branco. “É um processo dialético, uma relação entre acaso e necessidade, até que se chegue a um ponto em que tudo que há no poema é necessário”, define.
    Portanto, sua crítica à arte conceitual se dá porque ela parece prescindir justamente das questões estéticas da linguagem. “A arte conceitual é o abrir mão do criar, pois a criação é o ato de tornar o acaso necessário, ou seja, transformar aquilo que era desnecessário, que não existia, em algo que se torna necessário pela beleza, pela criatividade que contém, pela capacidade de maravilhar as pessoas”, afirma.
Do Jornal do Commercio