domingo, 8 de janeiro de 2012

A utopia matou um rato

Ferreira Gullar
    Karl Marx certamente morreria de vergonha se ainda estivesse vivo para ver em que se transformou, na Coreia do Norte, o sonho da sociedade igualitária e fraterna que ele concebeu.
    Revoltado com a selvageria do capitalismo de sua época, quando o trabalhador não gozava de qualquer direito, concebeu uma sociedade que, em vez do domínio da burguesia, fosse governada pelos trabalhadores.
    Na sua visão equivocada, o empresário nada produzia mas apenas se apropriava do que produziam os trabalhadores, que, como os criadores da riqueza, deveriam gozar dela e dirigir a sociedade.
    Ignorava, logo ele, que tão ou mais importante que o trabalho manual é o trabalho intelectual, sem o qual a economia não avançaria e a sociedade tampouco. Numa coisa, porém, ele estava certo: o capitalismo é um regime voraz que, movido pela sede de lucro e poder, a tudo devora. Até a si mesmo, como acabamos de ver no caso da bolha imobiliária nos Estados Unidos, que arrastou a economia norte-americana e a europeia a uma crise de consequências imprevisíveis.
    A tomada de consciência, naquela época, do que era o capitalismo, alimentou a luta ideológica que conduziu à revolução comunista, inicialmente na Rússia e depois na Ásia e na Europa oriental, chegando até Cuba, na América Latina.
    Só que, em nenhum desses casos, a classe operária assumiu o governo do país, mas, sim, o partido comunista ou, mais precisamente, os seus dirigentes, que passaram a usufruir dos privilégios próprios à classe dominante.
    É verdade que, em quase todos eles, medidas foram tomadas em benefício dos trabalhadores, cuja condição de vida melhorou bastante, mas não tanto quanto nos países capitalistas desenvolvidos. É que os capitalistas aprenderam a lição e viram que seria melhor perder alguns anéis do que todos os dedos.
    Isso durou grande parte do século 20, até que, para surpresa de muita gente, o sistema socialista começou a ruir e praticamente acabou.
    E não foi em função de nenhuma guerra, de nenhuma invasão militar: acabou porque não tinha condições de competir com o capitalismo que, ao contrário do comunismo, não nasceu de uma teoria, mas do processo econômico mesmo. Por isso o capitalismo é vital, criativo, voraz e destituído de ética, como a natureza. É evidente que um sistema, dirigido por meia dúzia de burocratas, não pode competir com um modo de produção que vive da iniciativa individual, ou seja, de milhões de pessoas, que querem melhorar de vida e enriquecer.
    A República Popular da Coreia do Norte é filha da Guerra Fria que, após a Segunda Guerra Mundial, opôs os Estados Unidos e a União Soviética. Essa disputa teve um de seus momentos mais críticos na guerra entre o exército ianque, tropas chinesas e soviética na península coreana, dividindo-a em duas: a Coreia do Norte, comunista, e a Coreia do Sul, capitalista.
    Mas não é só filha da guerra: é a perpetuação simbólica desse antagonismo, que já não existe mais em parte alguma, exceto lá. Como naquela época, até hoje a Coreia do Norte investe mais em armamento do que em qualquer outra coisa, mantém um dos maiores Exércitos do mundo e insiste em afirmar-se como potência nuclear.
    Isto quando o sistema socialista já desmoronou no mundo inteiro e a própria China -que era a expressão máxima do radicalismo revolucionário- aderiu ao modo de produção capitalista. O governo da Coreia do Norte ignora tudo isto e assegura que o socialismo invencível dominará brevemente o planeta.
    Mas as mentiras servem também para mitificar os próprios governantes, transformados em predestinados salvadores do povo.
    Kim Jong-il, o ditador que acaba de morrer e que nascera na Sibéria, ganhou por berço a montanha sagrada de Paektu. A locutora que noticiou sua morte na televisão o fez em soluços, como durante a espetacular cerimônia fúnebre, milhares de crianças, mulheres e soldados desfilaram fingindo soluçar convulsamente. Todos soluçavam, menos o filho que o substituirá. É que os grandes líderes, como os deuses, não soluçam.
    Marx morreria de vergonha: ali a história voltou a uma espécie de monarquia farsesca, onde o poder passa de pai para filho sob os aplausos da plateia assustada.
Da Folha